ontem compareci a um simpósio de Letras,
com as mesmas maiúsculas
que te afastaram
do mundo de fora para
dentro da tua fantasia,
a mesma que nos alimenta
e produz a graxa
de um mundo que
mistifica talentos pálidos,
tua cama cheirando como
um avô siciliano,
penso enquanto uma
professora bem bonita
fala do que você já foi
e pensou e escreveu,
como se você fosse o
mistério que de fato é.
a professora tem pés
bonitos e usa sandálias
de dedo, as unhas como
as de um velho boi,
um pé levemente mais
bonito do que o outro,
percepção que me deixa
obcecado e tranquilo.
a professora faz algo belo
para além dos pés:
compara tua escrita a certo
tipo de passarinho
que flutua sempre reunido
em nuvem de caos,
eles se debatem
violentamente juntos, nuvem
de crime em alta
tensão, mocidade em pânico,
mas a visão de toda
essa violência produz paz.
mas não seria minha a
paz, pois era minha vez.
ao contrário dos demais
eu não trazia um paper
com palavras escritas
que eu poderia apenas ler,
trazia tão somente tua foto
dentro de um quadro,
convite à morte
emoldurada pelas boas maneiras,
nervoso eu disse algo
como na foto ela se parece
com certa atriz
expressionista de origem alemã,
se fosse possível para
jeanne moreau ser alemã.
no fim das contas uma
discreta dor vergonhosa
me levou ao assunto da
vergonha que sentimos
no fundo de toda
homenagem a poetas incríveis
e que, apesar de
louváveis, nunca foram felizes.
era medo de cair em
devaneio, fugir do assunto,
por ignorância de
contar o tempo como acúmulo
de uma constatação pesarosa
e também infalível
de que também eu seguia
a trilha ruim que passa
pela extinção da vida
enquanto ainda há o corpo,
pela dissecação do
verso esmiuçando a cura final.
lembrei da selvagem nuvem
de pássaros e derreti,
porque seria frio falar
dessa brutalidade soberana
que da fricção da matéria
com o sentido inaugura
a beleza mundana, a
mais abstrata forma de vida.
fui desculpado pelos colegas
de mesa, que deram
aos teus versos a
devida altura de jogo indefinido.
dissecamos, cada um,
tua massa de matéria cinza
e percebi que alguém na
plateia estava aos prantos
e isso também me fez chorar
pensando então é aí,
onde não se sustenta,
que está, vácuo desafogado,
vida: cérebro espatifado
contra o muro da chance.
no final apareceu
humberto, o sobrinho, que bebe
como um dia eu também bebi
– como as crianças
– e me mostrou algumas
fotos tuas de juventude,
então me perguntei: será
se bebia? afinal, minas.
tu na foto de calça jeans
com os cabelos cheios,
teu sonho uma colagem
das revistas de cinema,
teu pasto uma folhagem
na garganta da esfinge,
restos de uma bússola na corrosão de um sonho.
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