30.10.23

"elegia tardia para maria lúcia alvim"


ontem compareci a um simpósio de Letras,

com as mesmas maiúsculas que te afastaram

do mundo de fora para dentro da tua fantasia,

a mesma que nos alimenta e produz a graxa

de um mundo que mistifica talentos pálidos,

tua cama cheirando como um avô siciliano,

penso enquanto uma professora bem bonita

fala do que você já foi e pensou e escreveu,

como se você fosse o mistério que de fato é.

a professora tem pés bonitos e usa sandálias

de dedo, as unhas como as de um velho boi,

um pé levemente mais bonito do que o outro,

percepção que me deixa obcecado e tranquilo.

a professora faz algo belo para além dos pés:

compara tua escrita a certo tipo de passarinho

que flutua sempre reunido em nuvem de caos,

eles se debatem violentamente juntos, nuvem

de crime em alta tensão, mocidade em pânico,

mas a visão de toda essa violência produz paz.

mas não seria minha a paz, pois era minha vez.

ao contrário dos demais eu não trazia um paper

com palavras escritas que eu poderia apenas ler,

trazia tão somente tua foto dentro de um quadro,

convite à morte emoldurada pelas boas maneiras,

nervoso eu disse algo como na foto ela se parece

com certa atriz expressionista de origem alemã,

se fosse possível para jeanne moreau ser alemã.

no fim das contas uma discreta dor vergonhosa

me levou ao assunto da vergonha que sentimos

no fundo de toda homenagem a poetas incríveis

e que, apesar de louváveis, nunca foram felizes.

era medo de cair em devaneio, fugir do assunto,

por ignorância de contar o tempo como acúmulo

de uma constatação pesarosa e também infalível

de que também eu seguia a trilha ruim que passa

pela extinção da vida enquanto ainda há o corpo,

pela dissecação do verso esmiuçando a cura final.

lembrei da selvagem nuvem de pássaros e derreti,

porque seria frio falar dessa brutalidade soberana

que da fricção da matéria com o sentido inaugura

a beleza mundana, a mais abstrata forma de vida.

fui desculpado pelos colegas de mesa, que deram

aos teus versos a devida altura de jogo indefinido.

dissecamos, cada um, tua massa de matéria cinza

e percebi que alguém na plateia estava aos prantos

e isso também me fez chorar pensando então é aí,

onde não se sustenta, que está, vácuo desafogado,

vida: cérebro espatifado contra o muro da chance.

no final apareceu humberto, o sobrinho, que bebe

como um dia eu também bebi – como as crianças

– e me mostrou algumas fotos tuas de juventude,

então me perguntei: será se bebia? afinal, minas.

tu na foto de calça jeans com os cabelos cheios,

teu sonho uma colagem das revistas de cinema,

teu pasto uma folhagem na garganta da esfinge,

restos de uma bússola na corrosão de um sonho.

28.10.23

"o novo gênio das letras"


com furiosos engajamentos matinais

por pautas confusas, sempre convicto,

acorda tarde e sem paz o novo ídolo.

 

sua violência são telas que atropelam

o silêncio dos menores, a quem escapa

um fio de meada, por isso não esperam

a necessária anunciação do novo ídolo.

 

e dentro do novo ídolo, um novo gênio,

porque é preciso rápido um novo gênio!

é preciso ser um homem – infelizmente.

pois gênios mulheres, todos já sabemos,

não servem para encaminhar toda gente

e a poesia de gênio é um caminho reto

até o centro criativo do que chamamos

última etapa de uma longa decadência.

 

há várias exigências, pr’além do gênero,

na concepção deste hoje tão necessário,

imprescindível novo gênio das palavras,

coisas que, de forma aparente, ao leigo,

nada tem que ver com a criação literária:

 

ter nos pés sapatos sempre desamarrados,

com solas sempre gastas, ainda que novos,

porque este novo gênio pesa mil toneladas

quando pisa com nova fé a terra devastada.

e, quando pisa, sacode na árvore da poesia

os frutos maduros, alguns podres, aqueles

quase prontos para se tornarem uma nova

árvore ou linda dor de cabeça para o povo.

 

mas na manhã do novo mundo, da nova era,

o novo gênio acordará e limpará as remelas

e anotará, ainda sonado, num papel simples:

“buscar com fé um mamão que seja barato”,

e a questão do mamão será a coisa mais cara.

 

precisamos tanto do novo gênio das palavras,

que o fato, de todo realista, da ideia do gênio

como algo que as épocas olham de binóculos

pelas janelas de um trem de carga em chamas

é uma piada lírica no fim de um longo poema

coberto de esperança por este que virá quando

finalmente jogaremos no lixo da história o zelo

com que olhamos pelos binóculos o nosso lixo.

 

e todas as épocas, de mãos dadas, farão a dança

no sabá das mais estranhas e indefesas criaturas,

às quais o novo gênio das palavras trará a chama,

o trem, a janela e o peso de um milhão de quilos,

a velocidade da qual não escapa época nenhuma,

para tocar fogo na palha fina do mais puro talento.

 

e nós lamberemos o talento como a pedra fictícia

no muro diante do qual o novo gênio das letras,

como a madrasta que cuida de órfãos, se ajoelha

e dá à luz a nova era com psicanálise justificada:

sonhos alienígenas costurados por livros mudos.

15.10.23

"foucault sorri de quimono"


para criar a beleza,

não do amor

ou da liberdade, mas

da solidão eterna,

é preciso viver

e morrer

num calabouço.

 

devo ao surrealismo

as amizades obesas

e o prêmio de ferro

do trauma educativo.

 

até aqui tenho sido

tão somente um

adolescente senil.

opto pelo acidente

porque, em arte,

só os preguiçosos

são capazes de fazer

coisa que preste.

 

de onde estou vejo

as tetas de deus

por toda parte.

deus essa cadela

romana leiteira

super preguiçosa.

 

é preciso tomar

as tragédias

com filosofia

ou então salivar

em público.

 

se leio é apenas

para me encher

de amor e dividir

ossos quebrados

com gente canina.

 

já não rasgo a pele

na escola superior

da cicatriz inchada.

 

a vida é um bolso

de sustos costurado

com linha finíssima

e agulha infectada

na testa da sorte.