31.10.22

"o pai tá on"




você estende seus quatro dedos

e pede água porque está rouco.

então de novo, forte e pequeno,

você penetra a cabeça do povo,

trazendo um alimento tão doce

que é a palavra bendita, a frase

que vira a seta para alguma luz.

 

metade gente, metade monstro,

não pudemos cantar teu nome

como o totalitário sim ao amor.

 

havia choro contido, presidente,

havia na alma uma represa de pus.

agora arde e, se arde, já sabemos,

cura, e se aperta segura, foi você,

na verdade, que nos fez aprender

a dar vida aos ditados populares

e trazendo de volta a imaginação

que fugiu daqui tem quatro anos.

 

falando apenas por mim quero arder

outra vez na convulsão do carisma

com que os deuses te presentearam:

tu, criança jesuíta que mil Herodes

não puderam matar, agora desperta,

rebolando, dançando cheia de tesão,

nos dizer É PRECISO TER TESÃO

porque não é possível que a barbárie

seja a base irretocável do nosso gesto.

 

com um jeitinho de se movimentar

todo particular você vem, sem voz,

gritar os nomes que desapareceram,

invocar todos os nossos ancestrais,

arrepiando os pelos de meio país

que precisava tanto de algo bom,

que é justamente você, presidente,

que lembra que não somos duros

ressentidos vazios de eros e amor,

mas o povo pela metade que cura

o rasgo na pele com a saliva justa.

16.10.22

"missa de domingo"

 

para Vó Zula

 

por que diabos fui encontrar deus

justamente nessa casa de paz fria

com pessoas famintas na porta e

pessoas com medo que entram?

 

por que foi que entrei eu mesmo

porta adentro e senti eu mesmo

paz quando saí do mundo e caí

na teia de uma calma só minha

com orelhas quentes de pecado

e calos doídos de ter caminhado

para baixar adrenalina sintética

de toda uma geração de girinos

que nadam por dentro da fossa

de uma desolação azul ou cobre

mais dentro ainda na veia viva

de um pavor estancado em pus?

 

mesmo assim você entrou, diria

você com aquele vozeirão lindo,

diria ainda que fui presa porque

talvez eu precisasse de um aval

mais banal do que a pequena fé

que envolve a todos que fecham

os olhos e esperam um milagre.

 

mas também é belo que me junte

a essa horda de miséria humana

que também me corrói os cascos

e acena com alguns bons efeitos

de uma deliciosa catarse pagã,

onde seres da floresta excitados

interrompem com rijo membro

o futuro acadêmico de donzelas.

 

não encontrei deus, é claro, como

nunca encontro ou encontrei deus

em lugar nenhum, mas, por ironia,

senti, justamente nesse lugar onde

a gente não é nada e a gente pede

sem nunca saber se o dia chegará

em que deus será apenas a forma

simples de amar as coisas sem ter

nem mesmo a coisa, mas um fim

assim meio nebuloso como sonho

com mãos suadas e acordos frios.

 

não deixaria você, vozinha, sem

um poema, já que você esteve lá

quando, criança sem mãe, recebi

o demônio diante das tuas carolas

que disseram é melhor deixar ele

respirar lá fora, e eu nunca mais

tinha voltado nesse quarto vazio,

mas aqui está seu neto, minha vó,

este que já não morre tão rápido,

reza o pai nosso e pode até mentir.

10.10.22

"bajo el vientre"




cheio de cédulas e moedas

enfiadas duras bajo el vientre

sigo solo por las calles ardientes

digerido e vomitado pelo vento.

 

descanso e compro um boné roxo

retirando as moedas e as cédulas

de bajo del mi vientre con amor.

 

é bonito um boné assim eu penso

todo roxo como en bajo el vientre

como a cara estampada na cédula

un señor como que roxo asfixiado

penso que de tanta plata ou aires

de importância, jagunços ávidos

da ganância estrangeira e branca.

 

mas sigo hasta el rio dónde niños

treinam futebol com sus novias

o amor a broma a brisa a brava

sorte de estar de pé emocionado

da terrível sorte de estar perplexo.

 

são pessoas brancas mas a mim

parecem aborígenes, africanos,

chineses, hindus, zapatistas o sea

a mim em suma são como seres

que fundaram algo e que depois

foram usurpados isso me parece

exato enquanto observo seus olhos

o modo displicente como se tocam

uns nos ombros dos outros e se dão

beijinhos nos lábios e nas bochechas

para ao mesmo tempo dizer te quiero

e também dizer te caliento soy tuyo.

 

entonces cambio de humor e apanho

meus fones de ouvido para escuchar

un rato de nuestra música tupiniquim

que é minha forma discreta de vestir

a tanga e desempenhar meu afeto livre

por um país tão imenso quanto perdido

e tão mais com medo do que eu mesmo

sem grandes epopeias porque nele pulsa

cérebro de peixe além de tripas firmes.

 

a tripa aguenta ainda o suficiente

para que eu siga pela beira do rio

escuchando manduka luiz melodia

sergio sampaio e o maior de todos

joão gilberto que canta olha o jeito

nas cadeiras que ela sabe dar e isso

enche meus pulmões de uma gana

toda nuestra toda tupiniquim que é

gana extra já sabemos não estamos

de férias pois aqui é o fim do mundo

salve amado brasileiro torquato neto

tua cabeça amassada é nossa pulga

que coça atrás da orelha do sonho

isso já ficou bem claro só que ela

está comigo o som e o sol não sei

mas aqui ninguém adivinha, aqui

não tem magrelinha ni naranjita

aqui no fim da linha uma donzela

que parece na verdade uma pantera

desliza de patins cai enxuga a cara

e no fim da trilha me lanço aos pés

da estátua de confúcio e leio sobre

direitos humanos de antes de cristo

quando a gente era ainda próxima

dos deuses da violência preliminar

que me traz de volta à ciudad vieja

e lembra cristo padre madre abuela

e sento para respirar fechar os olhos

por dez minutos numa igreja vazia

abro os olhos vejo a missa começa

o padre fala sobre direitos humanos

de depois de cristo e parecem menos

realistas mais heroicos espalhafatosos

que os direitos humanos de confúcio.

 

na convocação para comer a hóstia

me quedo em ligeira hesitação suína

mas depois penso que até os porcos

são filhos de deus então lavo o rosto

com água benta e dou todas as duras

moedas e cédulas bajo en el vientre

a um mendigo tan guapo como yo.

 

dali sigo ouço ¿por que no un rock

porteño tanguito charly luis alberto

ou aquelas bandas de fazer rodinha

tão bonito aqui eles chamam pogo

manal redonditos pescado rabioso

e que possa então finalmente chorar

e se eu cair que nunca me amargure

a loucura que nunca disse a ninguém

que ela venha comigo e me embale

com o carinho de uma mãe oriental:

república oriental do meu sonho vivo.