26.8.21

"minha amiga alemã"


passei anos capinando deitado,

hoje sei que vergonha

é o medo de ser eu mesmo.


preciso falar baixo,

para dentro de mim,

quando admito aqui

que não sei quem sou.

 

sei de coisas de que sou capaz,

mas não sei de que forma isso

quer dizer que eu sei quem sou.

 

é importante que eu saiba quem sou?

quando ando nas ruas penso que sim.

quando leio um livro penso que não.

 

quando fumo um cigarro,

me despeço com carinho.

não sinto vontade de falar

então fumo vários cigarros.

 

digo olá, adeus a isso

que não sei mas está aí.

essa forma germânica

de me colocar aqui

também me incomoda.

 

sinto saudade dela,

minha amiga alemã

que poucas vezes vi

e nasceu no deserto.


penso aqui na minha amiga

enquanto não sei quem sou.

 

deve ser lindo poder estar

na consciência secreta

de alguém que não sabe.

uma canoa no rio calmo

da minha loucura amém.

20.8.21

"do meu amor pelos surfistas"


para guilherme zarvos

 

agora sinto uma saudade de escrever

como se fosse um condenado à morte.

de que a escrita me volte como corpo

para o prazer de um maníaco sexual.

hoje rodopio com o intestino solto;

a poesia assim jorra com mais amor.

entre todas as pessoas que já conheci,

só os surfistas nunca me enganaram.

uma página de livro russo, uma frase

me põe, como se diz, com a macaca.

do princípio foram só duas escolhas:

felicidade sem liberdade ou liberdade

sem felicidade – mas para escolher eu

precisaria saber o que são essas coisas.

as coisas todas flutuam e, de repente,

me achatam, quando me sinto mágico

e me sinto a melhor pessoa do mundo,

mas só os surfistas são livres e felizes.

15.8.21

"uma nobre linhagem de desgraças"

 

às vezes só me resta, no frio de um domingo,

quando encontrarei meu pai, que se arrasta,

mas, de algum modo, parece muito mais feliz,

só me resta neste pesadelo de que não posso

ver-me livre então só me resta aqui carregar

uma tocha imaginária que vem dos desastres

de outros incandescentes e cegos como estou

aqui enquanto invento vida de olhos fechados

e toda uma gama de desgraças heroicas afiam

meus olhos e o coração de mil deuses afogam

minha dúvidas num mar bonito e inescapável,

doce imprecisão que, com violência, abraço

e me finjo a mim mesmo de morto outra vez,

cavo a gruta de crusoé no centro da multidão.

estamos juntos na chuva há uns tantos séculos,

a tristeza é a solenidade de uma carne barata,

com ganas de brinquedo e gaiolas de paixão.

 

"sexo dos deuses"


afrodite, querida,

me ajude a achar

algum caminho

nessa escuridão.

 

sim a mim me coça

calcanhar, esporas

atrasam o destino

inviolável do erro.

 

me afastar do amor

em vida é mais fácil

porque os produtos

em volta brilham.

 

afrodite, querida,

como ficar fora

da feira da vida,

com bom cabelo?

 

sim a mim me cega

a saúde da cabeça

e a concha do amor;

o resto já nem sei.

 

afrodite, querida,

os ruivos são um

em mil na estante

dos meus medos.

 

sim a mim me suga

o segredo de argila,

a beleza sem braços

do orgasmo divino.

6.8.21

"belano"

 

penso em você e, aos pouquinhos,

me aproximo bailarino do barranco.

tenho corrido, tenho comido mamão,

tratado a cabeça, meditado à tibetana,

com som artificial da chuva e passos

que vão da lama ao solo sagrado,

este mesmo que está na cabeça

de quem será por fim decapitado,

aquele que sorri e corre e sente

lesionado o músculo posterior da coxa.

masturbando-me tristemente, às vezes

com tesão por descobrir meu corpo,

já velho ter a impressão repentina

de que ficarei velhíssimo e bonito,

torço por isso, pela beleza velha,

com todas as minhas fichas aposto

no mais alto risco sobre minha cabeça.

as férias no inferno sempre acabam

quando estamos ficando animados.

tento abandonar a inteligência míope,

atraio cachorros na rua, faço catarro.