28.4.21

"entre atores e mendigos"


já estava com saudades

desses dias tristíssimos

em que os amigo caem

feito cabelos no câncer

e as juntas avisam: vem

chuva por aí; nas casas

as pessoas se encolhem

e nas calçadas ainda há

imaginária abundância

nas palavras de carinho

violentas como o amor

porque no fim do mundo

apenas os mendigos têm

direito civil à derradeira

festa do fim dos tempos.

esse banquete de restos,

a felicidade sem dentes,

enfim uma sintonia fina

com a despreocupação.

 

enquanto isso, em casa,

os donos do bom reino

dos céus, eles se agitam

para se tornar as cinzas

da nossa última fogueira

ou talvez fundar marte.

 

eu não procuro o reino

e não fundarei planetas

mas posso acompanhar

a inédita marcha fúnebre

pois ainda não me tornei

um mendigo para poder

dançar a derradeira valsa

e finalmente ser o nada

que se reunirá outra vez

no fim da apresentação

de um espetáculo triste.

 

fui um mau ator, penso,

daria um bom mendigo.

 

23.4.21

"pequena ração"


sobre ossos e ódio

continuar a nascer.

 

a cabeça do vacilo

já não precisa mais

de frases violetas

para ficar sem ar.

 

fé que se enforca

na corda do final,

saudade que dilui

a memória inútil

da desaprovação.

 

entre sinos e sobras

repartir as doenças.

 

dilúvios ou pombos

estão desaparecidos

e os poemas secam

no varal desalmado

de uma crua solidão.

 

em desespero ouço

as vozes de amigos

que escorrem surras

pelos narizes da paz

de uma tumultuada

possessão de ruínas.

 

mais uma vez faz frio,

pondera-se o fascismo

com bolhas de perdão

por nossos equívocos

diante do bom negócio

no coração silencioso

do nosso maior medo.

 

desabar no mistério

em que se acumula

sua impermanência,

sonho voraz – hino

de corrente folgada

aos pés do suicídio.

 

o carnaval do corpo

obriga ao sacrifício

dessa lúcida paixão

abotoada no castigo

pelo bem do esforço

de quem traz a cruz

e guarda o mistério.

 

 

21.4.21

“poesia em tempos de crise”


a poesia é uma vergonha elaborada,

eu disse há sete anos, sem vergonha.

sem saber com que roupa estou falando,

as gafieiras choravam nos becos e vielas

quando eu tinha a voz bem mais rouca,

fungava pelo nariz e deixava brotar

bolsas de pus na pele do meu pânico

e falava pelos cotovelos em sangue,

assassinato, destino, crueldade doce,

e dizia que sou um homem simples,

vejam vocês, e talvez alguém diga,

alguém que eu ame então para sempre,

mas você é mesmo um sujeito simples,

só que não sei com que pedaço de pano

estou falando e se estou falando mesmo

ou apenas sendo um apresentador

daqueles de auditório, que um dia

também foi conhecido como âncora

e que é aquela pessoa que nos enfia

enterrados no chão dos acontecimentos,

mas então eu tinha trinta anos e era puro

de uma sujeira nua que parece um manto

e dizia eu escrevo triste ou muito feliz,

o que significa agora não mais outra vez

escrever já que me acostumei com fotos

e propagandas em movimento harmônico

que levo nos bolsos com rezas heregeses

em que peço pela maior fé dos mundos,

enquanto poetas trocam de roupa ao vivo

e nunca imaginei que fossem tão bonitos.