à noite leio o livro
mais grosso de kafka.
penso que a melhor
literatura do mundo
pode ser aquela que
causa mais vergonha.
sonho com ratos que
invadem o colégio,
mas os amigos todos
agem como se nada
tivesse acontecido
enquanto, assustado,
digo o rato, olha o
rato, ali, mais um rato.
pela manhã evoco a paz
pelos intestinos,
depois invento por uma
hora, em silêncio,
que sou uma pessoa que
quase nunca sou.
preparo no gelo as
frutas, calculo apanhar
minha bicicleta, enfrentar
o calor e o caos.
tenho dificuldades para
escolher a música
que gostaria de ouvir
enquanto pedalasse,
com ansiedade inerente
ao fato de que sou
incapaz de enfrentar a
rua sem ouvir música,
enquanto me forço pela
parte mais íngreme
no trajeto do lugar
onde vivo até o trabalho,
um pouco antes daquele
túnel muito velho,
na tentativa de
imaginar, nesse momento,
que sou agora um piloto
de alto rendimento,
que calcula, na saída
do túnel, a abertura
que deve fazer, no arco
em que se encontra
a linha única do super
desempenho ciclístico,
e quando, perfeito é o
arco, poderia esperar
o vento forte no rosto
sob os quarenta graus
da cidade linda de tão
vazia e desprezível,
cemitério onde os
restos de carmen miranda
fervem na poeira como
sopa de pedra infinita
por dentro da nossa
cômica desolação comum,
esperando saber para
onde vai este que nunca
sou eu mesmo entre os personagens
inventados.
de volta do trabalho,
separo os potes do amanhã
e sinto o apodrecer do
mamão que, no outro dia,
será cortado, numa
felicidade trágica, mas amiga.
e lembrarei, um por um,
os mais amados nomes
que a distância mastiga
na face do esquecimento.
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