eu preciso salvar
apenas um dia,
inventar um deus e não
ter vergonha
por estar perdido e por
não senti-lo.
criar a matéria da
sensação não sentida
e chamar deus mesmo que
ele não possa
fazer nada além de ser
um tal mistério
que com mão não se toca,
com língua
não se fala, com
palavra não se pronuncia.
não chorarei agora com
a coragem de deus,
este é outro problema:
deus não se empresta.
necessito de uma coragem
toda e só minha
para poder chorar e
viver por este único dia
com a pequena sensação
que me foi dada
e sentir o gosto
salgado da minha fúria
os sais minerais da
minha água própria,
os elementos de
pedregulho da minha paz,
que vem do nada e para
o nada volta e fico
sem dar nome à a nada
com estas palavras.
estas palavras nunca
darão conta
da dor que me fazem
escrevê-las.
com mãos que nada mais agarram,
eu preciso agora escrevê-las
levado
pela dor, mas não escrever
contra ela,
pois tudo que agarrei
me abandonou,
escorreu pelos meus dedos
inchados,
pois eu perdi enquanto
comemorava
e ganhei enquanto perdi
solenemente.
eu preciso ser bem menos
inteligente
para poder ver e me entregar
e estar nu
diante do abismo que
toda inteligência
abriu diante dos meus
pés sem direção.
que existe um deus,
ainda que me seja
vergonhoso admiti-lo dentro
da fraqueza,
dona do magro dia que
preciso salvar.
preciso falar menos
sobre o que preciso
falar e sobre o que
preciso aqui desejar,
enquanto escrevo menos
como um poeta
e mais como alguém que
nunca viu nada.
porque a falta de visão
me leva ao desejo
e desejo sem visão é
como um crocodilo
com a boca fechada e olhos
arregalados
de fome silenciosa e paciência
de muro
enquanto corro em
círculos e tenho pressa.
uma vida inteira sem
ficar de pé
agora é uma vida
pequena de pé.
de pé como se estivesse
deitado,
de pé como se estivesse
perdido,
de pé como se
impossível agora
sentar para descansar
ou sentar
para desistir, ainda
que os amigos
existam: eu não sou
meus amigos.
chorar com toda força,
se ela vier,
pela fraqueza com que pude
sorrir.
presentemente, salvar
apenas o dia.
sem estética para
agradar o que nunca
salvou um dia enquanto
eu ganhava
maiúsculos enganos no
chapéu das horas.
ser impotente a toda
salvação que não
a salvação de um dia e
não do outro.
o teto recolhe a ferida
aberta do olho
e o segundo em que
decidi não pular.
não pulei, não pularei,
eu quero sentir
a dor da ferida para
gostar da ferida,
agora que a dor é
palpável e ela fica
na antessala de
lembranças rainhas
sem aquela ânsia de
entrar ou de sair,
sem combustível para longas
viagens,
agora andar descalço e
fazer do choro
a marca na estrada que
o vento seca
por isso é bonito
chorar de poder sentir
o que não podia sentir
para ser igual.
quero sentir o que não
quero sentir,
abrir os braços para o
carinho sutil
do deus que criei
quando me cansei
de ser o deus
implacável da minha
contida presença nesta
vida surda
e não ser igual e não
fechar nunca
os olhos e olhar a
parede para dizer:
eu te amo, parede do
meu abismo.
transtorno de salvar apenas
um dia:
e só por um dia poder
estar vivo.
com tudo de pequeno que
me cala
e tudo de imenso que me
escorre,
pelas calças de um medo
sem sono.