14.6.20

“deixa eu ser”

para melvim brito

deixa eu ser o seu padrinho,
um valete do seu coração partido
que, aos pedaços, fica fácil de engolir.
quero sentar num canto pequeno da vida
e pensar nos quilômetros que andamos
juntos como dois namorados de madeira
que nunca se tocaram e também parecem
duas crianças de quem foi arrancada
a infância já que somos anões adultos
e temos esse tamanho tão diminuto
que podemos caber em qualquer bolso,
que podemos explodir feito estalinhos
aos pés de toda essa maldade inox
que resvala na lavagem do detergente
para dentro de nossos choques elétricos.

deixa eu ser a sua mãe, meu anjo,
para cortar as unhas da sua tristeza
e alimentar com músicas o seu espanto
que se inclina para baixo como as tumbas
das quais nos rimos com certa coragem
naquela tarde vazia, contagiados de luz
em meio aos notórios da consolação.

temos tanto para dividir e não temos nada,
é como se fôssemos dois budas mascando
chiclete e tragando cigarros de maldade,
dois cantores desempregados que aquecem
as vozes em meditação ao chuveiro,
culpados pelo colapso da amazônia
enquanto se atrasa a nossa iluminação.

batemos pezinho nas matinês azedas
das vidas que promovem a dor provável
que escorre na água choca que se destina
aos passarinhos e às pombas sem pata,
aquela água de mau-hálito matinal
que brilha de morte e uiva de doenças
inauguradas de esquemas de afeto e maio
que este ano não veio e já é junho –
veja que coisa boa – é possível morrer,
com o amor sendo esse canto difícil,
a música, o mistério, essas paradas,
esses pelos de peruca que penteamos
com artifícios de rezas ventríloquas,
na combustão de nossa fé temerosa.

deixa eu ser a sua infiel gal gosta,
você um duplo de tom zé lado b
do lado b, portanto um espião russo
e um jardineiro no jardim de cimento,
este que percorremos rindo de tudo,
mandando aos diabos, falando mal
das pessoas ou estátuas que amamos,
catando, conforme piolhos, elogios
no couro cabeludo dos tiranos.

no fim regamos o cimento embrutecido
com uma delicadeza quase suicida,
tão bonita que nem vale a pena falar,
mas falo a pedra bruta de enterrar coração,
como se fôssemos mafiosos de playmobil
na catástrofe de um silêncio em batidas
na porta que não há, chave que não temos,
silêncio das nossas cabeças arremessadas
contra a parede da solidão dos encontros,
bem dizer um palco sujo de talco e sangue
para dois tagarelas que mereciam bem mais
mas, por ora, não temos nada, que bom,
pois foi de bolsos vazios que nos vimos,
no limbo de expectativas uruguaias,
com o dante de belchior nos sovacos
e a pastilha da morte sob nossas línguas,
a pastilha da sorte – eu disse a você e você
sorriu e pensou: todo surdo é um otimista.






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