29.10.18

“surgirá a flor”



as mãos já não alcançam o desejo, o seio do problema
tornou-se um câncer bonito do qual se orgulhar.
depois de tantos anos erguendo a taça do riso fácil
esquecemo-nos de que na taça pode haver veneno
e que o ressentimento é um veneno que se toma
querendo que o outro morra – agora aprenderemos.

será talvez preciso enfiar uma pá em nossas idéias,
trazer a estima por deus no braço aberto da carne.
seremos chamados de loucos, nos sentiremos loucos,
e dessa brutalidade surgirá a flor do câncer bonito,
brotará de nossa loucura uma alavanca para o afeto
pois quem nos chama de loucos já não tem mais nada.

21.10.18

“comunista fdp”


aposenta aqui tua pena que te esqueceu
e mesmo as palavras que usarás agora
não dizem nada e nunca disseram muito.

resvala a língua no cinza brutal da seca
com que te proteges de um mundo ruim
por entre as chances pálidas de um vulto.

sorri ereto a fórmula que te abandona,
fecha os olhos e sente tuas veias fracas.

agora amas e precisas aprender a morrer.

talvez agora seja preciso usar a força,
então faz a prece íntima da tua dúvida,
corre até o abraço do impossível degelo.

é tempo de sorrir aos pálidos pela cor
que o futuro retirou de ti antes mesmo
de poder asfixiar o presente com táticas.

que gelada é a planície do teu afeto, qual
cataclismo implodirá tua face no vácuo
coletivo de todos os planos do mundo?

o vermelho escolhe sempre qual a cor
do sacrifício na escuridão de uma vitória,
quando cada um goza sozinho o que vem
depois bater à porta em cobrança de paz.

quanto não te custou, surda, a paz da tua
autocelebração doentia agora que já vais
pelo ralo com todas as tuas promessas?

na sombra dos dias felizes de flagelo
inchava o monstro vestido de solidão.
o vermelho do teu martírio no adesivo
em busca de um porrete ou um abraço.

aperta o teu melhor sorriso e deseja isso,
que apertes até o fim teu melhor sorriso,
na jaula temporária do teu maior medo.

8.10.18

“wagner tiso e a ascensão do fascismo em hell de janeira”


e ainda assim não seria melhor se não soubéssemos.
certas vitórias se comemoram melhor em silêncio.
isso sou eu falando para mim mesmo me despedindo
com os olhos ruins de outros companheiros inéditos
pensando que bom poder reconhecê-los, que alegria
poder estar vestido como eles, triste como todos eles.
nós nunca ganhamos em silêncio, mas, hoje, em silêncio,
ganhamos uns aos outros, nos olhamos pela primeira vez.

por exemplo: a livraria está vazia, toca jazz de elevador.
entra então, cabisbaixo, de camisa vermelha, wagner tiso.
sobe as escadas, parece ofegante, até o café, atira-se ali.
e, dentro da desgraça, pela primeira vez dentro do gesto,
eu sou igual a wagner tiso, isso me dá felicidade triste –
sou mestre nos enlaces da felicidade triste, como a chamo.

corro até o som central da livraria, adeus jazz de elevador!
nunca mais ouvirei uma música que não tenha o sangue
de todos os corações tristes do mundo e mudo a música,
ponho milton nascimento, que canta eu sou da américa
do sul, eu sei vocês não vão saber, e eu acho engraçado,
nunca soubemos tanto como é ser daqui – wagner pede
uma taça de vinho, a música não parece ter feito grande
efeito, ele bate timidamente o pé, no ritmo certo, como
quem parece dizer claramente: o wagner tiso agradece.
então vejo os mesmos olhos de todos os meus amigos
e também de todos os que não são ainda meus amigos,
mas, pensem bem, camaradas, essa pode ser a chance
de sermos finalmente camaradas mais que fantasmas
de causas particulares nos armários da nossa frustração.

depois pus milagre dos peixes e depois clube da esquina.
depois escrevi para um amigo mineiro: acho que estou
vendo wagner tiso chorando enquanto o mundo acaba.
então isso quer dizer que o mundo ainda não acabou,
diz o meu amigo ou sou apenas eu mais outra vez
falando coisas para mim mesmo, o mais provável
é que ele nem mesmo estivesse chorando de raiva,
mas talvez de nós quase termos conseguido – ouça –
mas tudo escorreu na vaidade do umbigo afetuoso.

então wagner tiso finalmente se levanta para ir embora,
corro para a porta como se eu mesmo estivesse partindo.
ele passa por mim cabisbaixo como entrou, eu penso:
levante a cabeça, maestro, o mundo ainda não acabou.
mas não falo e isso sou eu – será daqui em diante assim?
dizendo a mim mesmo o diálogo que poderia nos salvar.


6.10.18

“à espera de um milagre”


você precisa agora se disfarçar de alguma coisa,
não porque você seja falso, talvez um pouco pernóstico,
mas porque você não sabe o que deveria fazer,
essa coisa em movimento amedrontado que é você não sabe
e mais uma vez o mundo está acabando e todo mundo
se recolhe e explode por dentro: é o fim eles dizem
e você precisa de alguma forma se disfarçar,
porque você não sabe quem é e isso é muito grave,
pessoas muito próximas que entram e saem parecem
saber exatamente ou pelo menos mais que você
sobre o que é ser alguém sem nenhum disfarce.

mas aqui está você mais uma vez à sombra do vulcão,
você não engana como groucho marx ou fassbinder,
talvez as pessoas outras tampouco saibam bem
o que é que acontece quando se perde a imagem
capaz de ultrapassar o mundo para dentro de cada um,
que é cada um na solidão invencível das multidões.

mosquitos saudáveis gostam muito do teu sangue,
disfarça tua medusa no incêndio do teu passado,
escreve o texto e dorme porque na rara manhã
você carrega livros impossíveis dentro da cabeça
e se disfarça daquilo que só existe para não te salvar.