24.4.17

Uma enorme cozinha do coração pulsante


Sobre o livro "elefantes dentro de um sussurro", do Marcelo Reis de Mello
Azougue/Cozinha Experimental (poesia, 2017)

É muito difícil dizer qualquer coisa sobre o que teu livro me causou sem lembrar de ti, num dia chuvoso, de pé, numa época matreira ainda sem cheiro de golpe. Você cansado, implicante e amoroso, tornando-se um acadêmico com alguma chance, o que estabiliza e ao mesmo tempo esgota a cuca: esse lidar com as engrenagens. Mas acima de tudo me lembro de você como um escritor lidando com ser um homem, com ser um pobre coitado e – por que não? – com ser deus. Isso logo nos aproximou e, no dia em que te vi chorando num bar por um amor perdido, pensei: que bonito, um homem chorando sem ser um babaca. Aprendi muito sobre mim mesmo naquela noite ruim.

Daí você me aparece com o rascunho de um livro de poemas e me entrega no bar – como era mesmo o nome daquele boteco, Palhinha? – que ficava em frente à saudosa Travessa do Ouvidor, onde eu passava minhas tardes adquirindo amizades e pneumonia. São poemas com alguma relação semiótica com As Afinidades ou a Teoria das Cores do Goethe e o escambau, você me disse, então pensei: talvez ele tenha parado de chorar finalmente, e isso faz quanto tempo, cinco, seis anos?

Era ótimo, naqueles tempos pré-manicomiais, estar perto de uma voracidade ao mesmo tempo capaz de rasantes de lógica e sagacidade matuta. Era bom, em suma, naqueles tempos ainda não tão difíceis e tão mais adultos do que nós, estar perto de ti. Dividido entre o acadêmico cú de ferro e o brutamontes chorão de fala rápida capaz de apostar corrida contigo – e perder, é claro – numa rua movimentada do centro da cidade, em meio a garrafadas e corações despedaçados e punguistas de carteiras com bigodes bem aparados.

Tua poesia, já àquela época, estava impregnada da tua forma de viver. Apostar no incrível, jogar-se nas coisas que ama, amar só o que acredita, como aquele jogador de pelada capaz de chorar porque perdeu um jogo e vai ficar duas de fora. Mas aquele ainda era, permita-me equivocar se for o caso, um livro muito entranhado de filosofia de gabinete e pigmentos e adornos linguísticos e goethes e schillers e schlegels e tals. Um livro que ainda estava lutando, e perdendo, num ringue onde, gigantescos, surgiam a POESIA e a ACADEMIA.

Era preciso esperar, o gênio dizia e estava certo e agora eu entendo. Este teu livro esperou, como eu nunca pude fazer com os meus, que saem como cuspes verdes nos olhos de quem os lê. Sabendo que “perder é mais doce”, você perdeu ainda algumas vezes, enquanto eu sempre pensava: ele deve estar amando outra vez. E isso era fato, e que bom, você estava se atirando noutros espinhos, teus schillers e teus goethes vieram limpar tua pia, que estava suja numa sobra apocalíptica de mangas bichadas.

Os bichos a que chamo os poemas do teu livro foram crescendo, inchando, foram ganhando casca, acumulando “tártaros nos sonhos”, até se tornarem elefantes perfeitos. Silenciosos, fofinhos às vezes, sorrateiros, azul-cinzento, paternais até, eles te convidam para um baile doméstico entre apetrechos de cozinha e uma enciclopédia de termos que, você ainda pode, com força, presumir, revelarão em breve suas intenções psicóticas de abate e pulsão de achatamento e máquina lenta de conscientização.

Porque não podemos ser homens quaisquer, nem podemos ser poetas quaisquer, existem estes elefantes dentro de um sussurro. Porque aquilo que grita espera dentro do ouvido. E por anos você foi jogando fora os anéis, as unhas postiças, retomando os calos, os rasgos de combate, até jogar fora também as mãos e chegar na “escavação com muita coisa dentro, mas sem imagem”, porque “a boca é uma máquina ruim” – que tiro esse verso! – e falamos as imagens para matá-las.

Elefantes não falam, Marcelo, boa ideia, eles pesam e são bons de olhar, a certa distância. Senti raiva por ter caído em tão próxima e perigosa distância. A culpa é tua, teu livro é uma armadilha numa cozinha equipada com facas. Uma esfíngica máquina de catástrofes ao sabor dos olhos, uma engrenagem de vespas sem sossego, sobre frutas quase mortas, num mundo em que a “revolução é um nó na garganta”. Uma enorme cozinha do coração pulsante, para mim que, com minha lua em touro, finalmente fiz um risoto de gorgonzola e me senti bem. Tuas “frutas fraturadas” me lembraram de que sou, eu também, um morcego em cujo peito rangem os dentes do sol.

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