Sobre o livro "elefantes dentro de
um sussurro", do Marcelo Reis de Mello
Azougue/Cozinha Experimental
(poesia, 2017)
É
muito difícil dizer qualquer coisa sobre o que teu livro me causou sem lembrar
de ti, num dia chuvoso, de pé, numa época matreira ainda sem cheiro de golpe. Você
cansado, implicante e amoroso, tornando-se um acadêmico com alguma chance, o
que estabiliza e ao mesmo tempo esgota a cuca: esse lidar com as engrenagens. Mas
acima de tudo me lembro de você como um escritor lidando com ser um homem, com
ser um pobre coitado e – por que não? – com ser deus. Isso logo nos aproximou e,
no dia em que te vi chorando num bar por um amor perdido, pensei: que bonito,
um homem chorando sem ser um babaca. Aprendi muito sobre mim mesmo naquela
noite ruim.
Daí
você me aparece com o rascunho de um livro de poemas e me entrega no bar – como
era mesmo o nome daquele boteco, Palhinha? – que ficava em frente à saudosa
Travessa do Ouvidor, onde eu passava minhas tardes adquirindo amizades e
pneumonia. São poemas com alguma relação semiótica com As Afinidades ou a
Teoria das Cores do Goethe e o escambau, você me disse, então pensei: talvez
ele tenha parado de chorar finalmente, e isso faz quanto tempo, cinco, seis
anos?
Era
ótimo, naqueles tempos pré-manicomiais, estar perto de uma voracidade ao mesmo
tempo capaz de rasantes de lógica e sagacidade matuta. Era bom, em suma,
naqueles tempos ainda não tão difíceis e tão mais adultos do que nós, estar
perto de ti. Dividido entre o acadêmico cú de ferro e o brutamontes chorão de
fala rápida capaz de apostar corrida contigo – e perder, é claro – numa rua
movimentada do centro da cidade, em meio a garrafadas e corações despedaçados e
punguistas de carteiras com bigodes bem aparados.
Tua
poesia, já àquela época, estava impregnada da tua forma de viver. Apostar no
incrível, jogar-se nas coisas que ama, amar só o que acredita, como aquele
jogador de pelada capaz de chorar porque perdeu um jogo e vai ficar duas de
fora. Mas aquele ainda era, permita-me equivocar se for o caso, um livro muito
entranhado de filosofia de gabinete e pigmentos e adornos linguísticos e
goethes e schillers e schlegels e tals. Um livro que ainda estava lutando, e
perdendo, num ringue onde, gigantescos, surgiam a POESIA e a ACADEMIA.
Era
preciso esperar, o gênio dizia e estava certo e agora eu entendo. Este teu
livro esperou, como eu nunca pude fazer com os meus, que saem como cuspes
verdes nos olhos de quem os lê. Sabendo que “perder é mais doce”, você perdeu
ainda algumas vezes, enquanto eu sempre pensava: ele deve estar amando outra
vez. E isso era fato, e que bom, você estava se atirando noutros espinhos, teus
schillers e teus goethes vieram limpar tua pia, que estava suja numa sobra
apocalíptica de mangas bichadas.
Os
bichos a que chamo os poemas do teu livro foram crescendo, inchando, foram
ganhando casca, acumulando “tártaros nos sonhos”, até se tornarem elefantes
perfeitos. Silenciosos, fofinhos às vezes, sorrateiros, azul-cinzento,
paternais até, eles te convidam para um baile doméstico entre apetrechos de
cozinha e uma enciclopédia de termos que, você ainda pode, com força, presumir,
revelarão em breve suas intenções psicóticas de abate e pulsão de achatamento e
máquina lenta de conscientização.
Porque
não podemos ser homens quaisquer, nem podemos ser poetas quaisquer, existem
estes elefantes dentro de um sussurro. Porque aquilo que grita espera dentro do
ouvido. E por anos você foi jogando fora os anéis, as unhas postiças, retomando
os calos, os rasgos de combate, até jogar fora também as mãos e chegar na
“escavação com muita coisa dentro, mas sem imagem”, porque “a boca é uma
máquina ruim” – que tiro esse verso! – e falamos as imagens para matá-las.
Elefantes
não falam, Marcelo, boa ideia, eles pesam e são bons de olhar, a certa
distância. Senti raiva por ter caído em tão próxima e perigosa distância. A
culpa é tua, teu livro é uma armadilha numa cozinha equipada com facas. Uma
esfíngica máquina de catástrofes ao sabor dos olhos, uma engrenagem de vespas sem
sossego, sobre frutas quase mortas, num mundo em que a “revolução é um nó na
garganta”. Uma enorme cozinha do coração pulsante, para mim que, com minha lua
em touro, finalmente fiz um risoto de gorgonzola e me senti bem. Tuas “frutas
fraturadas” me lembraram de que sou, eu também, um morcego em cujo peito rangem
os dentes do sol.
Nenhum comentário:
Postar um comentário