enquanto fumo
ilicitamente
na varanda
da casa grande
onde trabalho
servindo doutores
mendigos nobres
gênios precoces
assassinos muito
bem comportados
enquanto fumo
pensando se devo
finalmente parar
de fumar e viver
vejo uma tal cena:
dois seres humanos passam
um traz dois cachorros pretos
velhos encoleirados nas
últimas
outro traz um lindo cão
dourado
daqueles com a língua
de fora
novo o bastante para
ser idiota.
os dois humanos são corteses
civilizadamente se
aproximam
exibindo-se como adestradores
hábeis
trazem frouxos os cães nas
coleiras.
os cães que estavam
tranquilos
distantes das intenções
humanas
rapidamente dão-se
conta uns dos outros
raivosamente começam a
latir e avançar.
os humanos estacam,
puxam com força as coleiras
dão gritos
apaziguadores, dedos indicadores pressionam
as fuças dos bichos
que, sem disfarçar sua alucinada
vontade de latir e
morder e estraçalhar uns aos outros
sentam-se e levantam-se
enquanto os humanos explicam
com insistência como se
deve portar um cão civilizado:
os cães precisam gostar
uns dos outros
qualquer cão deve ser
obrigado a cheirar
o rabo de outro cão que
passa e ter uma
conversa canina amigável
com esse cão.
os cães não entendem,
permanecem selvagens
imunes a pedidos
agressivos e ordens simpáticas
os proprietários
humanos, não sem constrangimento
trocam pequenas frases de
consolo um com o outro
como
“ele teve uma semana agitada
subimos a serra”
ou
“a rua muito barulhenta
geralmente
ele é educado”.
bravamente os cães
mantêm-se cães raivosos
o cigarro no fim, chega
a chuva, torço por eles
então o humano
proprietário do casal de cães
(“ele deve estar com
ciúmes dela, deve ser isso”)
resolve amarrar o que
suponho seja o cão macho
num poste de luz e traz
sua companheira fêmea
arrastando-a até o
lindo e jovem cão de ouro.
força a fêmea de costas de modo que o câine de aur
possa cheirar seu cu – isso
parece impressionar –
o humano proprietário
do golden dog se mantém
atento e ereto como se mostrar
surpresa ou rejeição
pela cena o diminuísse
como adestrador desse cão
cascata de maravilhas
ou niágara do olimpo canino.
o cane doro cheira avidamente a fêmea preta velha
enquanto seu parceiro
macho está amarrado num poste
e urra por dentro do
que só pode ser um ódio canino
que parece bem mais
potente do que o ódio humano
com que estou
acostumado e me sinto até indiferente.
neste epílogo os
humanos flertam-se calmamente
eu apago aos prantos
minha guimba e sujo as mãos
e penso eu sou um cão
eu sou um cão preto e velho
sou cão preto velho e
farei risoto na lua em touro.
os proprietários exibem-se
como adestradores hábeis
colecionadores de
fotografias e cadeiras da bauhaus.
chien
d’or
cor de mel monta sobre a fêmea anciã
trazendo com força suas
ancas ao chão imundo
os humanos estão
sérios, são bons adestradores
estamos na rua em
botafogo, tenho mãos sujas
os cães são quem são, eu
torço por eles imundo.
desinteressados, selvagens,
sedentos, raivosos.
a fila do cinema
aumenta a cada instante imundo
os seres humanos são
simpáticos e adestram bem.
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