23.4.17

"cão de ouro"

enquanto fumo
ilicitamente
na varanda
da casa grande
onde trabalho
servindo doutores
mendigos nobres
gênios precoces
assassinos muito
bem comportados
enquanto fumo
pensando se devo
finalmente parar
de fumar e viver
vejo uma tal cena:

dois seres humanos passam
um traz dois cachorros pretos
velhos encoleirados nas últimas
outro traz um lindo cão dourado
daqueles com a língua de fora
novo o bastante para ser idiota.

os dois humanos são corteses
civilizadamente se aproximam
exibindo-se como adestradores hábeis
trazem frouxos os cães nas coleiras.

os cães que estavam tranquilos
distantes das intenções humanas
rapidamente dão-se conta uns dos outros
raivosamente começam a latir e avançar.

os humanos estacam, puxam com força as coleiras
dão gritos apaziguadores, dedos indicadores pressionam
as fuças dos bichos que, sem disfarçar sua alucinada
vontade de latir e morder e estraçalhar uns aos outros
sentam-se e levantam-se enquanto os humanos explicam
com insistência como se deve portar um cão civilizado:

os cães precisam gostar uns dos outros
qualquer cão deve ser obrigado a cheirar
o rabo de outro cão que passa e ter uma
conversa canina amigável com esse cão.

os cães não entendem, permanecem selvagens
imunes a pedidos agressivos e ordens simpáticas
os proprietários humanos, não sem constrangimento
trocam pequenas frases de consolo um com o outro

                                                       como
 
                “ele teve uma semana agitada
                                                      subimos a serra”
                                                   
                                                           ou

                  “a rua muito barulhenta
                                      geralmente ele é educado”.

bravamente os cães mantêm-se cães raivosos
o cigarro no fim, chega a chuva, torço por eles
então o humano proprietário do casal de cães
(“ele deve estar com ciúmes dela, deve ser isso”)
resolve amarrar o que suponho seja o cão macho
num poste de luz e traz sua companheira fêmea
arrastando-a até o lindo e jovem cão de ouro.

força a fêmea de costas de modo que o câine de aur
possa cheirar seu cu – isso parece impressionar –
o humano proprietário do golden dog se mantém
atento e ereto como se mostrar surpresa ou rejeição
pela cena o diminuísse como adestrador desse cão
cascata de maravilhas ou niágara do olimpo canino.

o cane doro cheira avidamente a fêmea preta velha
enquanto seu parceiro macho está amarrado num poste
e urra por dentro do que só pode ser um ódio canino
que parece bem mais potente do que o ódio humano
com que estou acostumado e me sinto até indiferente.

neste epílogo os humanos flertam-se calmamente
eu apago aos prantos minha guimba e sujo as mãos
e penso eu sou um cão eu sou um cão preto e velho
sou cão preto velho e farei risoto na lua em touro.

os proprietários exibem-se como adestradores hábeis
colecionadores de fotografias e cadeiras da bauhaus.

chien d’or cor de mel monta sobre a fêmea anciã
trazendo com força suas ancas ao chão imundo
os humanos estão sérios, são bons adestradores
estamos na rua em botafogo, tenho mãos sujas
os cães são quem são, eu torço por eles imundo.

desinteressados, selvagens, sedentos, raivosos.

a fila do cinema aumenta a cada instante imundo
os seres humanos são simpáticos e adestram bem. 

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