29.6.15

"my funny borderline"


escamas ou patins
no gelo ou na água
deslizas e pulverizas
pedras e consomes
gentes e miragens
giram nos teus olhos
mergulhos e rasgos
anunciam as feras
uma escolha entre
duas feras é sempre
o projeto das noites
em transe de parede
afiando pergaminhos
para degolar o vácuo
do tempo que se foi
e do tempo que não
chega mas tu chegas
deslizando afundando
com teu próprio peso
morto com teu passo
em falso que cultiva
escamas ou patins
no gelo ou na água
tua sina é explodir
para todos os lados
canibalizar a raiva
em urro oitentista
charme irrefutável
do que é quase lá
mas é sempre aqui
acumulando neve
arrastando pausas
rompendo as veias
o cardápio da vida
o sono das varandas
a morte aposentada
este chicote íntimo
riso enlouquecido
mostra da mistura
do que no princípio
foi a lava do porvir.

27.6.15

"matadouro"


agora tomo banho, me arrumo,
aparo os cabelos nas orelhas
e os bigodes de leão marinho,
pois hoje vou ao matadouro.

no matadouro pessoas tecem
opiniões relevantes sobre assuntos
concluídos, os matadores de mim
leem de tudo e sorriem frios.

são simpáticos, mas é possível
também imaginá-los delatando
alguém por uma bolsa ao mérito.

são charmosos e pagam bebidas,
amam com mel de abelha e foices,
enquanto afiam solidárias adagas
e notam a perfeita circunferência
dos pescoços de suas vítimas.

é acima de tudo no matadouro
onde a vida e o sangue flutuam
em curtos vapores de humor,
onde compartilhamos moscas
por dentro dos olhos virados.

falamos as letras, sempre elas,
que, mais que lâminas e balas,
dão polidura ao surto do sangue.

agora pronto, é chegada a hora,
rápidas memórias, como flashes,
alucinam o peito na expectativa
de que a dor seja como um raio,
um corte seco no que inaugura
com vísceras a temporária casa.




20.6.15

"mais uma vez"



mais uma vez aqui,
e já há tanto tempo,
na agressividade seca do instante,
no acelerador de partículas da alma,
no refúgio dos corações enferrujados,
nas bolas de fogo dentro dos bolsos,
nos narizes avermelhados de amor e ódio,
nos catarros do receio e da culpa esculpida,
na síndrome das pernas agitadas e da boca
imensa e cheia de tiros trêmulos.

mais uma vez aqui,
e já há tanto tempo,
hóspede na terceira classe
de um trem descarrilado,
robô que foge da chuva,
da chuva ácida de xangai,
mitologias esfareladas
com restos de animais à mesa,
junto apenas na distância
que separa o horizonte
de toda esperança.  

mais uma vez aqui,
e já há tanto tempo,
na vergonha de não conseguir,
na vergonha de seguir tentando
não conseguir para permanecer vivo,
vivos estamos, pensamos todos,
é preciso não conseguir para estar vivo,
é preciso saber sempre pela metade
e da outra fazer o calvário
muitas vezes silencioso e sem músculos,
da doce passagem tumultuosa,
com imensas dificuldades,
por saber muito mais
do que seria bonito saber.

9.6.15

"oitava de mahler"


leões mansos que nos rodeiam em silêncio
honram o sagrado território do amor.
tudo o que passa é apenas semelhança,
é preciso urgentemente uma cirurgia no coração.
é preciso preencher estas linhas também
como pontos e grampos na pele profanada.
é o silêncio assassino dos leões mansos
aquilo que nos conforta, a natureza dupla
de um rugido de mil leões mansos enjaulados,
e todos cantam apenas o canto do amor
e da vista sem impedimentos e da impossível
trégua ou descanso, mas ilimitada é tua coragem,
enquanto bates o queixo em roupas de cama
nos cômodos infestados por um velho fardo
que também é teu fardo enquanto tremes,
digno de reverência, te bates aos pedaços,
nas ruas destemidas do anonimato, no ódio
de um mundo doente e lindo de ser o único.
quando de repente todo o turbilhão se acalma,
esqueces a coragem e as ratazanas da alma,
e, ao maculado, reservada a beleza provisória
de se estar por um instante entre os deuses.



7.6.15

“eu sou os melhores dias”


não escrevo, não escrevo mais.
sou tão infantil que doem os dentes.
engulo chocolates novamente,
pretendo cáries e votos de compaixão.
todos têm o que dar, mas não dão.
porque somos finalmente adultos.
ser adulto é horrível, mas é melhor
do que pensar que serei adulto um dia.
agora sou, não tenho nada a não ser
camundongos nos cantos da sala
e uma vida que sempre parece
que vai melhorar, pois sou otimista.
meus amigos fazem coisas nítidas
como filhos, cursos, oficinas de poesia.
tento dormir sempre mais um pouco
porque estou deprimido outra vez
e nessas horas penso em gritar:
mais alguém é capaz de estar assim?
seria bonito ver de perto a tristeza
ou a tentativa de felicidade mórbida
de alguém que já não tenha morrido
e que possa olhar para mim e dizer:
sou triste, estou levando, não sei onde,
não sei se está perto, parece colado,
mas te vejo e me vejo como se tivesse
visto você em outros melhores dias.
eu sou os melhores dias de espera.