28.1.13

"Parafernália do Coração"

à extrema direita, Uirá dos Reis, com seu visual Pablo Escobar,
e ao seu lado, Guto Parente, o cineasta mais bonito do Brasil


O que se passa na cabeça de quem faz um filme? No caso do filme a ser tratado, isso parece de suma importância. Fico pensando no que pensaram Uirá e Guto, o que queriam ao realizar Doce Amianto, que, só como título, daria um lindo poema. Mas não é de poesia que tratarei aqui, ou melhor, sempre é, quando é bom tratar de algo. Acho que Uirá e Guto pensaram muito em poesia quando decidiram fazer Doce Amianto. Creio que, na impossibilidade de esgotar tudo o que este título pode gerar de poética, fizeram então um filme. E o filme é um poema épico sobre as nossas vidas, a vida de qualquer um de nós.

Pouco importa que o personagem central, Amianto, mais pareça um travesti ultrassensível. Na verdade, o fato de ele o ser talvez me mostre que, diabos, todo mundo é travestido neste mundo. E aí voltamos à primeira questão: o que justifica um filme, por que fazê-lo? Arrisco dizer que Doce Amianto foi feito porque precisamos recuperar o estado amórfico do amor. Porque precisamos entender de uma vez por todas que estar “aberto para a mágica” é estar travestido e corajoso. Assim são os personagens de Doce Amianto: corajosos, travestidos, coloridos de uma ternura arriscada.

Nada no filme de Uirá dos Reis e Guto Parente é real, nada ali resvala em algum cotidiano reconhecível, no entanto, e isso é um dos méritos do filme, enquanto vemos as cenas oníricas apresentadas de modo jarmaniano pelos diretores e atores e equipe técnica, somos levados a pensar se a dita realidade não seria apenas farelo perto daquilo. O ambiente que o filme cria em nós faz somar à realidade reconhecida alguns pontos que ela deveria ter mais não tem. Ou seja, é um filme que torna a realidade obsoleta, torna não, revela que a realidade é extremamente obsoleta, porque nela falta aquela luz específica, aquelas vozes de outras pessoas em cada um, aqueles voos mágicos de fada, e ficamos babando estáticos, abonados, enfim, da realidade. Nada mais coerente, no entanto, já que amianto é, no fim das contas, uma fibra composta de minerais metamórficos.

Logo no começo, em citação do longo poema de Whitman (que é, não se esqueçam, o libertário, o passador de era), existe uma listagem de coisas, digamos, sem restrições morais, coisas que em geral existem sem que sequer as escolhamos em nossas vidas e então é preciso dizer que não, que essas coisas “não são coisa nenhuma”, são algo, sim, por pior que sejam ou por mais toscas ou belas ou primárias e ternas ou abruptas e miseráveis, é sempre algo, e não aceitaremos mais imposições do que deve ou não deve ser, e nisso há, na minha visão, uma juvenilidade, ainda que melancólica, disposta a forçar sua necessidade orgânica aos trancos e barrancos ainda que não haja nada muito claramente estabelecido na cabeça sobre o que possa substituir ou mesmo coexistir com as antigas e frígidas e calmas pisadas do antigo século dos esconderijos. E foi esse tipo de frescor juvenil que, imediatamente, senti quando li as linhas da citação inicial. E que explica muito da proposta do filme como uma imersão nessa ultrarrealidade mágica, como antídoto ao veneno cotidiano, que é o mesmo veneno do preconceito. E acaba que tudo é comum a todos em Doce Amianto, mas nada é de ninguém. Existe uma espécie de maldade incrustada em todos nós, mas uns se dão conta disso, por isso sofrem e alguns até são canonizados em vida; outros nunca reparam e por isso vencem, mas entediam-se com a vitória e decaem no vazio. A cena que talvez mais bem ilustre esse sentimento seja a recriação de uma crônica de Charles Bukowski, quando o homem, para se curar do “mal do mundo”, precisa usar de alguma violência aleatória, mas no fundo não há possibilidade de sucesso quando duas pontas de equilíbrio juntam-se, e isso fica provado no fim da cena – por sinal, quem leu o conto (ou crônica) imediatamente a reconhece.

Para resumir devo dizer que Doce Amianto cumpre o dever explícito de romper com a realidade. Ou melhor, o filme nega a realidade, suprime-a para tomá-la, em suas próprias ferramentas, como objeto de um mundo ultrarreal, portanto não é bem uma fuga, mas uma chegada inóspita. E, acima de tudo, o filme retoma o que parecia perdido para boa parte dos cineastas veteranos, que é a parafernália do amor. O cinema, como mecânica, é muito facilmente repetitivo em normas, técnicas, ângulos, tempo, e tudo isso é nada diante dos filmes que abordam a parafernália do coração. Doce Amianto ainda vai além, arrastando uma era em elo com outra a ser ainda digerida. O filme usa as mais terríveis ferramentas do cinema de mercado (diálogos estilizados à moda antiga hollywoodiana / dublagem fora de sinc / as cores falsas do cinemascope) para, através de uma catarse e de uma auto deglutição, sublimar justamente a ambivalência e, acima de tudo, o que há de mais importante e fundamental no cinema de todas as épocas: a parafernália do coração.

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