à extrema direita, Uirá dos Reis, com seu visual Pablo Escobar,
e ao seu lado, Guto Parente, o cineasta mais bonito do Brasil
O
que se passa na cabeça de quem faz um filme? No caso do filme a ser tratado,
isso parece de suma importância. Fico pensando no que pensaram Uirá e Guto, o
que queriam ao realizar Doce Amianto, que, só como título, daria um lindo poema.
Mas não é de poesia que tratarei aqui, ou melhor, sempre é, quando é bom tratar
de algo. Acho que Uirá e Guto pensaram muito em poesia quando decidiram fazer
Doce Amianto. Creio que, na impossibilidade de esgotar tudo o que este título
pode gerar de poética, fizeram então um filme. E o filme é um poema épico sobre
as nossas vidas, a vida de qualquer um de nós.
Pouco
importa que o personagem central, Amianto, mais pareça um travesti
ultrassensível. Na verdade, o fato de ele o ser talvez me mostre que, diabos,
todo mundo é travestido neste mundo. E aí voltamos à primeira questão: o que
justifica um filme, por que fazê-lo? Arrisco dizer que Doce Amianto foi feito
porque precisamos recuperar o estado amórfico do amor. Porque precisamos
entender de uma vez por todas que estar “aberto para a mágica” é estar
travestido e corajoso. Assim são os personagens de Doce Amianto: corajosos,
travestidos, coloridos de uma ternura arriscada.
Nada
no filme de Uirá dos Reis e Guto Parente é real, nada ali resvala em algum
cotidiano reconhecível, no entanto, e isso é um dos méritos do filme, enquanto
vemos as cenas oníricas apresentadas de modo jarmaniano pelos diretores e atores e equipe técnica, somos levados
a pensar se a dita realidade não seria apenas farelo perto daquilo. O ambiente
que o filme cria em nós faz somar à realidade reconhecida alguns pontos que ela
deveria ter mais não tem. Ou seja, é um filme que torna a realidade obsoleta,
torna não, revela que a realidade é extremamente obsoleta, porque nela falta aquela
luz específica, aquelas vozes de outras pessoas em cada um, aqueles voos
mágicos de fada, e ficamos babando estáticos, abonados, enfim, da realidade.
Nada mais coerente, no entanto, já que amianto é, no fim das contas, uma fibra
composta de minerais metamórficos.
Logo
no começo, em citação do longo poema de Whitman (que é, não se esqueçam, o
libertário, o passador de era), existe uma listagem de coisas, digamos, sem
restrições morais, coisas que em geral existem sem que sequer as escolhamos em
nossas vidas e então é preciso dizer que não, que essas coisas “não são coisa
nenhuma”, são algo, sim, por pior que sejam ou por mais toscas ou belas ou
primárias e ternas ou abruptas e miseráveis, é sempre algo, e não aceitaremos
mais imposições do que deve ou não deve ser, e nisso há, na minha visão, uma juvenilidade, ainda que melancólica,
disposta a forçar sua necessidade orgânica aos trancos e barrancos ainda que
não haja nada muito claramente estabelecido na cabeça sobre o que possa
substituir ou mesmo coexistir com as antigas e frígidas e calmas pisadas do
antigo século dos esconderijos. E foi esse tipo de frescor juvenil que,
imediatamente, senti quando li as linhas da citação inicial. E que explica
muito da proposta do filme como uma imersão nessa ultrarrealidade mágica, como
antídoto ao veneno cotidiano, que é o mesmo veneno do preconceito. E acaba que
tudo é comum a todos em
Doce Amianto , mas nada é de ninguém. Existe uma espécie de
maldade incrustada em todos nós, mas uns se dão conta disso, por isso sofrem e
alguns até são canonizados em vida; outros nunca reparam e por isso vencem, mas
entediam-se com a vitória e decaem no vazio. A cena que talvez mais bem ilustre
esse sentimento seja a recriação de uma crônica de Charles Bukowski, quando o
homem, para se curar do “mal do mundo”, precisa usar de alguma violência
aleatória, mas no fundo não há possibilidade de sucesso quando duas pontas de
equilíbrio juntam-se, e isso fica provado no fim da cena – por sinal, quem leu
o conto (ou crônica) imediatamente a reconhece.
Para resumir devo dizer que Doce Amianto cumpre o dever
explícito de romper com a realidade. Ou melhor, o filme nega a realidade,
suprime-a para tomá-la, em suas próprias ferramentas, como objeto de um mundo
ultrarreal, portanto não é bem uma fuga, mas uma chegada inóspita. E, acima de
tudo, o filme retoma o que parecia perdido para boa parte dos cineastas
veteranos, que é a parafernália do amor. O cinema, como mecânica, é muito
facilmente repetitivo em normas, técnicas, ângulos, tempo, e tudo isso é nada
diante dos filmes que abordam a parafernália do coração. Doce Amianto ainda vai
além, arrastando uma era em elo com outra a ser ainda digerida. O filme usa as
mais terríveis ferramentas do cinema de mercado (diálogos estilizados à moda
antiga hollywoodiana / dublagem fora de sinc / as cores falsas do cinemascope)
para, através de uma catarse e de uma auto deglutição, sublimar justamente a
ambivalência e, acima de tudo, o que há de mais importante e fundamental no
cinema de todas as épocas: a parafernália do coração.
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