30.12.13

"o corpo não pode"





para Belchior

o corpo não pode encontrar seu lugar dentro do corpo.
é preciso tempo para se apaixonar, é preciso esquecer
a violência de tanto tempo, a solidão e a fúria, a pressa
de correr perigo acabou por assentar os cascos de prata.
é no sul da alma que se encontra o estômago do desafio,
o egoísmo de acumular cifras como rastros dessa trilha.
um bandolim dedilha as cordas do meu coração infantil,
o sol dos quintais aquece o erro fugido às letras cifradas.
vazar o céu da filosofia, romper o sono vínculo provável.
não imaginavam que se pudesse fazer o que diz a beleza
daquelas tardes apoiadas ao violão do rapaz sem nome.
resta agora chorar dentro do carro, resta apenas o amor.
a riqueza encolhe o ritmo da ancestral máquina humana,
um corpo cai de muito alto, jamais atingirá o solo duro.

o corpo não pode encontrar seu lugar dentro do corpo.
caindo do alto, procura tocar-se, procura algo que, útil,
saia do seu caminho, desprenda-se para fora do acerto.
a felicidade, foi dito, é uma arma quente, no alto donde
cai o corpo está surdo todo o perigo, aqui a ferida viva
na parede da memória não conta mais os seus metais.
do alto dessa queda haverá alguém com quem morrer,
longe da família o familiar rebanho corre em muda paz.
cansado de não poder falar sobre essas coisas sem jeito,
o corpo deixou a sessão das cinco e o beijo sentimental,
o batom serve agora para marcar os espelhos dos hotéis
conforme vai-se fazendo a maior música, esquecimento
dos corpos atropelados que não deram o perigoso salto
e ficaram como as letras das velhas canções de outrora,
enjauladas pelo medo na juke box de um boteco imundo.

o corpo não pode encontrar seu lugar dentro do corpo.
o corpo vem de uma terra onde o céu é o próprio chão,
o que chama alma se entortou junto ao bagaço de cana,
garotos esperam por nova aparição em teatros-fantasma,
suam os versos de um tempo apodrecido de anteontem,
ficaram para trás paralelas nos estacionamentos da rima
e os antigos compositores baianos tornaram-se inchados,
protegidos pelo bolor dos festivais da canção onde vaias
são agora velhas senhoras nas salas de cinema das tardes.
tomba o corpo horizontalmente e seu prelúdio infanticida
são agora as cutículas de uma ordem infestada pelo brilho
da tinta acrílica no bigode branco de um homem que vê
e agora fala o grande amor o sinal se abriu para o musgo
e as músicas são caixas de poeira na beleza da pista falsa. 

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