11.4.12

"RASTROS DO ÊXODO"

FRISSON – SP – (1)

no fundo escrever é o nosso principal sexo, a perfeita comunhão com o corpo.
mas, sem estragá-la com os excessos da pele,
teremos parâmetro suficiente para reconhecermos
a sua perfeição?

FRISSON – SP – (2)

Nossa primeira discussão mais séria foi acerca de um pedaço de pão e restos de um queijo ruim e caro. Você come bastante, acabou com tudo, ainda bem que sobraram esses farelos. Emburrou-se e fechou a cara durante toda a manhã. Nada se quebrou, embora exista agora um copo bem na beirada da mesa. Nunca mais tentar ser engraçado. Quando sentir vontade de sê-lo, ser sério. Aí está a origem do riso. Ela tem mil tipos de riso, e não precisa pensar em nada engraçado para emitir nenhum deles. Projeto ambicioso: tentar catalogar as variações de riso. Ser sério e tentar desvendá-los. Sem pressa. Nunca mais escrever nada que não leve ao desespero qualquer homem apressado. Isto é uma frase de outra pessoa, agora é minha. No fim me angustiou pensar que eu não era capaz de reconhecer minha própria graça. Desejo de voltar a dormir imediatamente. Mas ela dorme, ronca baixinho, é incrível que uma pessoa tão pequenina ronque, mesmo que baixinho. Acordar depois dela seria, portanto, uma compensação ilustrativa. Pensar é o preço de não saber. Lembrar disso no fim do dia. Não dançaremos hoje à noite.

FRISSON – SP – (3)

São Paulo é uma cidade onde os bancos se parecem com lanchonetes e as lanchonetes se parecem com bancos. E onde uma loja Marisa se parece com um banco que acabou de se tornar uma lanchonete. Devemos estar mesmo nos entendendo bem: paramos horas ao sol para observar uma senhora de uns 90 anos toda de branco e com um lenço azul claro que estava em pé com uma bolsa preta esperando algo na esquina justo em frente às Oficinas MC. Duas pessoas observando uma senhora, o que ela fará, o que estará a senhora esperando do movimento do mundo naquele exato momento, aquilo era a realidade suspendendo-se diante de nossos olhos recém chorados. A velha encostou-se ao automóvel esporte vermelho e eu jurava que estava prestes a entrar numa girada sinuosa de corpo, soltar o lenço na cabeça branca e sair com o lenço esvoaçante arrancando com o automóvel esporte vermelho. Sua filha chegou – mas quem disse que era a filha afinal? – minutos depois, abriu o carro, a senhorinha entrou. Mas tínhamos sido crianças por quase dez minutos.

FRISSON – SP – (4)

Em nosso último – ou terá sido o primeiro? – dia havia finalmente começado a chover; São Paulo resplandecia. Acordamos silenciosos, nos olhamos por um longo tempo, mas em variações de tempo invertidas. De modo que nos olhamos sem nos olharmos, como nos filmes sobre a burguesia italiana do pós-guerra. É preciso fé para abrir os olhos, ela disse enquanto estalava as costelas e eu comia um resto de ovo de páscoa. Na rua chovia, era um belo dia de sol. Andamos por uma avenida gigantesca, mas eu até esqueci o nome dela. Um banho por ora, depois morrer um pouco. Por ora um abraço, me avisa mais tarde. Andamos apartados e nos olhamos depois de metros, no mesmo instante. Um dia bom para filmes. Fui ao museu. Ela comeu bacalhau. Chegou a noite e me deprimi. Era importante suportar alguma violência em toda aquela notícia súbita de que estávamos na história das coincidências fotográficas. Pensamos que aquilo era apenas um bom presságio. Cruzei os dedos enquanto me afastava. Atravessou a cidade a pé.

FRISSON – SP – (5)

Deu-me o diário de Maria Gabriela Llansol. O rastro do êxodo. Boa ideia para um título. Frase para poema: perdi meu chafariz na tua fonte sem sombra.

FRISSON – SP – (6)

Acordamos exaustos e famintos, talvez com algum receio de termos gastado precocemente o nosso contato. Comemos numa padaria cheia e cara, mas muito bonita, apesar de parecer irreal. Ela pediu dois cafés expressos e dois pães de queijo. Normalmente não gosto de ver as pessoas comendo. Observei o ambiente. Ela terminou de comer e foi ao banheiro. Uma família italiana se aproximou. Um garoto com as têmporas suadas apoiou-se no balcão e gritou para que uma velha italiana típica sentasse ao meu lado. Creio que usou inclusive a expressão mamma ou nonna, o que, confesso, emocionou-me. Ela voltou e pareceu espantada por eu não ter cuidado do seu lugar. Impossível, eu disse. É uma mamma ou nonna italiana legítima. A mulher do caixa riu muito conosco, de nós. Não me lembro se ela me deu a mão ou o braço e saímos rápido, mas acho que sim. No caminho, entramos sem querer no meio de uma procissão judaica. Havia um velho com uma perna da calça maior do que a outra e um terno que lhe cobria os braços. Um personagem do expressionismo alemão, e resolvemos segui-lo, enquanto ele desceu uma galeria que vendia roupas em geral muito feias e, em sua maioria, femininas. Ficamos desapontados quando descobrimos que ele queria apenas ir ao banheiro. Lembrei da senhora na esquina das Oficinas MC e ri por dentro.

FRISSON – SP – (7)

Apontei algumas fachadas horrorosas de edifícios no intuito explícito de deixar claro: venho para viver. Mas velada havia uma vontade quase súplice de que ela virasse de repente, dada a feiura desoladora daquelas fachadas, e dissesse: podemos achar um lugar mais bonito para nós. Não devemos velar tanto, concluí, ou devemos ao menos velar tudo. Uma fachada em especial, no centro pobre, me chamou atenção. De massa cinzenta, como um velho fumante, toda pichada, lembrava ternamente meu próprio coração, arrasado mas, pelo menos, de longo uso. Com relação a este edifício, você chegou a erguer a cabeça no que pensei “Grécia, Florença?”, mas limitou-se a sorrir. Tive a impressão de que um sorriso seria um bom espaço para se viver dentro dele. Pensei em seguida: com um lenço amarelo, de seda algodão viscose, preso a um prego naquela varanda, seria possível quem sabe ser feliz, ou pelo menos alegre.

FRISSON – SP – (8)

Ao deitarmos na mesma cama fiquei inquieto com dois sentimentos complementares, inimigos: sofrimento e esperança. Tocar ali era matar a esperança, e a esperança, ao contrário, era pela morte do sofrimento. De todo modo, fui inábil, falei demais, bebi. A esperança queria ganhar de qualquer jeito e por isso fez acordo com o sofrimento. Pegamos no sono de mãos dadas, acho que ela chegou a se deitar no meu peito. Posso ter sonhado. Seria um milagre. Mesmo assim não morremos, éramos já outros. Acordamos curiosos e assustados em saber quem éramos agora. Com o correr do dia, aceitamos nossos novos outros como se aceita um tio inconveniente que chega para se hospedar em nossa casa. Apesar de tudo, é um parente. Havia já a casa, mas lá estava também o tio.

FRISSON – SP – (9)

Ganho dela três livros:
um Pavese
um Andreiev
uma Llansol

Sinto como se eu fosse Andreiev, ela Llansol (porque no livro havia ainda por cima suas anotações, inclusive cortes de alguns trechos do original, com retoques, insights, teoremas) e Pavese fosse o filho da nossa fricção matizada por uma cor ainda inexistente. Um bebê fraquinho, sem leite, mas cheio de talento e reprovação. Ponho na cabeça que preciso começar por Llansol. É tudo muito agradável, mas terminal. Ela cita João da Cruz, Hadewijch da Antuérpia, Müntzer e o Mestre da Culpa. Imagino feições estranhas e fantasmagóricas para suas imagens. Concluo que Llansol não me faz bem. Uma forma também de ter essa mulher de cujo ventre saiu meu Pavese, nostro piccolo cesare. é gostando deste livro. Repito cem vezes para meu coração: eu gosto deste livro. Com a repetição, aceito: eu tenho essa mulher.

FRISSON – SP – (10)

Talvez eu não saiba mesmo explicar, leoa, porque me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese. Sua carta contra os fofoqueiros, sua serena superioridade, sua privilegiada ausência de tudo. Talvez eu não saiba mesmo explicar e por isso talvez eu saiba que deveria de alguma forma estar aqui para poder tentar te explicar porque me incomoda tanto o suicídio (com soníferos!) de Cesare Pavese e mesmo assim olhando para o chão enquanto você que é sua imagem livre de mim finalmente apresenta os olhos imensos vitrais de igreja gótica e sua boca roxa de uma noite de vinho e os cabelos que você disse meu irmão não admite que eu pinte de outra cor que não seja loiro mas loiro resseca o cabelo e dá muito trabalho é preciso ir ao cabeleireiro e eu detesto cabeleireiros você viu só aquele casal a menina sentou e pediu que o menino esperasse enquanto ela pintava as unhas da mão você já viu alguma coisa parecida? Eu disse não mas eu diria qualquer coisa porque o acontecimento de uma imagem fere a face de deus e glorifica o homem então eu tentei fazer uma omelete dos ovos sobre os quais pisávamos tentando segurar nas pontas dos dedos as nossas frágeis expectativas e fiquei feliz porque ela era menor do que eu imaginava e me senti mais confiante porque ela comentou é bom ver a pessoa ao vivo porque existem detalhes que aumentam a gama de possibilidades de mistério de uma pessoa já que nos detalhes às vezes quase imperceptíveis do rosto estão as fugas e encontros com fantasmas que nos fazem chorar sem mesmo fechar os olhos e apertamos tenho certeza o coração ao sabermos a tragédia da vida e como bebemos e como andamos estupefatos acachapados com as chances de destruição e anulação de que somos todos capazes e não existe talvez vida em equipe amor sem etapas é preciso muito sentimento para rompermos a couraça, leoa, e muito mais cafuné para não pensarmos serão necessários quantos soníferos ou cartas pirateadas de ilhas longínquas para interrompermos essa gagueira ensandecida que nos une e em nosso sofrimento talvez possamos compreender o nosso nobre laço eu não posso aceitar infelizmente ou falar sobre os motivos pelos quais me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese sua desistência histórica seu charme kamikaze e talvez eu nunca consiga e faça algumas vezes o papel de vitima do inominável mas oh cigana podemos falar o que quisermos e andarmos quilômetros quase em silêncio ou de braços dados porque não me importo em te oferecer o braço como se fosse a mulher protegida do casal. Importante controlar os ânimos.

FRISSON - SP - (11)

Cheguei e fizemos fora do combinado. Disse para meu coração: amém. Uma coceira pelo corpo me fez não querer esperar mais nada. Saí, impressionado com como havia batido forte a porta. Talvez Julia tenha acordado. Seria bom se acordasse a tempo. Não aconteceu. Saí. Você me mandou uma mensagem dizendo onde devo encontrá-lo? Respondi apenas só conheço onde fica o MASP, estarei ali no laguinho. Peguei no sono forçadamente, como quem espera um dilúvio sem teto. Gostei de estar desamparado. Adormeci imediatamente, como quem ouve o câncer. Em minutos, no entanto, em sobrevida, despertei num salto. Havia ao meu lado uma reunião de mendigos muito elegantes em torno de uma lata que fazia fogo. Conversavam animadamente, mas com semblantes sérios, o que me pareceu algo raro e incrível. Fiquei feliz que minha presença não os tenha incomodado, senti como se me oferecessem com os olhos uma ponta de cigarro. Aceitei mentalmente, e me afastei para o outro laguinho. Pensei o que você acharia quando me visse junto aos mendigos elegantes que riem falando sério. Pensei em Nietzsche, senti-me aliviado. Pobre Nietzsche, não teve a mesma sorte. Finalmente, na horizontal, vi você atravessando a rua. Fingi estar dormindo, mas, sem os mendigos em volta, a cena não fazia mais sentido. Senti-me excluído do convívio dos risos sérios. Você parecia apressada, sorria como um dos mendigos elegantes, seriamente. Senti-me excluído ao quadrado. Por isso voltei a dormir. Assim que me levantei, pretendi estar desnorteado. Uma infantilidade e uma limitação voluntárias. Queria pretender (ou seja, fazer ser o que não é) aquilo que já era. Assim que você chegou minhas palavras me pareceram ser eu estava fingindo que estava dormindo. Por que fiz isso, nunca saberei. Demoramos uma tarde para darmos finalmente as mãos. Na hora do sono, tive pesadelos. Você me deu a mão outra vez. Sua mão era mais quente que a minha e suava enquanto você dormia. Imaginei que tínhamos vários corações dentro do corpo, um deles na mão. Depois dormi melhor. Você dormiu de bruços e de lado, e disse que sonhou com pessoas cujos rostos iam ficando gradativamente pretos, até desaparecerem. Eu disse que deveria ter algo a ver com os sonhos do Kafka, que você estava lendo. Parecia a voz de uma outra pessoa que disse isso por mim. Discutimos por causa do pão e do queijo. Tive um prenúncio de forte amizade, com chuvas.

FRISSON – SP – (12)

No bar, choramos em muito pouco tempo. O que se dá nisso é que o corpo junta-se finalmente com a emoção e não se aguenta. E quando o corpo não se aguenta, é a primeira vez que vemos o corpo. Espantados com nossas graves diferenças (eu ando em linha reta até a beleza arruinando-a ou ao menos devendo-a em sangue - você contorna a beleza de modo a mantê-la intacta em seu mistério / eu dionísio - você apolo / você olhos grandes - eu pequeninos / narizes idem) planejamos intimamente uma guilhotina onde pudéssemos descansar por minutos as nossas cabeças.

FRISSON – SP – (13)

Sentamos numa praça, observando as pessoas em volta. Uma família espanhola, aparentemente mãe/avó/filhinho, estava à nossa frente, brincando com bonecos de super-heróis. Ficamos calados, como se nossos barulhos, inclusive os estomacais, pudessem afetar negativamente o desempenho dos atores. O filhinho distribuiu três bonecos. A avó seria o Batman, a mãe o Super-Homem, ele próprio o Homem-Aranha. Voavam com os bonecos como se fosse a nós perfeitamente plausível manter asas. Num dado momento, lutaram. A mãe disse ao filhinho hay que luchar, ao que ele respondeu em automatismo de coisa bruta luchar para que? Todos ficaram mudos e creio que nos olhamos, o menino inclusive virou-se para você. Tinha um rosto de mil anos. Não estamos, nós adultos, preparados para responder perguntas de crianças. As perguntas que fomos quando crianças tornaram-se nossa pele vaga, porque já não se fazem mais as perguntas às quais não é possível responder. A mãe começou a voar com seu boneco, o que deixou o filhinho pasmo, excitadíssimo. Na hora acrescentei que, se fôssemos namorados, estaríamos nos beijando, ou fazendo pequenos carinhos, e perderíamos a cena. Você concordou apenas depois, quando entendeu o que eu quis dizer. Por enquanto estamos soltos mas ainda não livres. Isto foi incluído posteriormente. Viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós. Isto também. Mantivemos um pouco mais de silêncio, como quem tira a roupa das horas. Pensei se estávamos realmente ali. Acho que sim, você disse sem mexer a boca.

5 comentários:

peixe disse...

lindo demais, leo.
obrigada.

a cassandra é uma vovózinha que comeu seu netinho na noite de natal e enterrou os ossinhos no quintal disse...

cigano imagine que venho à caixa de comentários
escrever como é bela a leoa e cruzo a ciberesfinge

"Prove-que-você-não-é-um-robô"

deve haver disfarçado atrás desse desafio indevassável
um dos quatro cavaleiros do após-calipso dançando a dança
do Somos las muchachas de Copacabana ou então
são as realidades artificiais humanizadas à velocidade da luz
a artilharia pesada perseguindo nossas identidades secretas
e se assim for conforme reza a profecia descrita no último livro
dos livros interceptará ainda o nosso caminho a tempestade
de pragas pedras e podres

antes do fim

proteja-nos ó mestre dos pântanos desconhecidos
sob a marquise impermeável de uma taberna que nos sirva
aguardente e escalda-pés na terra prometida...

Anônimo disse...

Leo, você é demais! Lindo, lindo e lindo. Bjs. MM

Belchior disse...

A eletricidade desta cidade
me dá vontade de gritar
que apaixonado eu sou.

Nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento
só têm o momento de fugir no disco voador.
Meu amor, meu amor, meu amor!

Belchior tinha esquecido o início disse...

Vamos andar
pelas ruas de São Paulo,
por entre os carros de São Paulo,
meu amor, vamos andar e passear.
Vamos sair pela rua da Consolação,
dormir no parque, em plena quarta-feira,
e sonhar com o domingo em nosso coração.