31.8.08

"Ao volante do Chevrolet"

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...


(Álvaro de Campos / Fernando Pessoa)

29.8.08

"uma cena como outra qualquer"

É só dobrar a Marquês de Olinda com os pelos do braço eriçados porque você está ouvindo Nick Drake cantando what would happen in the morning whem the world it get so crowded that you can’t look out the window in the morning e isso te emociona de uma forma patética então o peito infla, os pés parecem muitos, mas basta dobrar e olhar para debaixo do viaduto que você não verá nada de novo, tudo como uma cena qualquer de cada dia num lugar onde estão todos à espreita, prontos para correr ou te enfiar uma faca pelas costas, e basta olhar, não com muita atenção, para o viaduto em frente à saudosa Rua Marquês de Olinda, provavelmente em homenagem a um saudoso vigarista, e você não verá nada de novo, tudo como uma cena qualquer, roupas gastas balançando ao vento sobre pedaços de coisas ainda misteriosas e cerca de oito meninas de rua, já acima dos seus quinze anos e com corpos fortes como os daquele tipo de cão de corrida, você verá cerca de oito dessas meninas sem a moral ainda muito bem definida cheirando cola de sapateiro e rindo enquanto outras duas se dão socos aleatoriamente, como numa rinha de galo – algumas já sem forças, mas ainda bondosas, tentam apartar a briga e têm igualmente os cabelos repuxados e as cabeças arremessadas ao chão, e de repente outra mulher, puro osso, mais velha, se aproxima e segura uma das meninas-lutadoras pelo braço e não há mais tempo para ver a cena, é preciso seguir em frente quase como um fluxo mecânico, e na seqüência há um policial entediado ouvindo lorotas de um velho vendedor de flores que à noite, discretamente, trafica cocaína a gordas donas de casa, há duas noviças pedindo a fiado um cigarro num boteco e talvez se ouça uma troca de tiros, uma secretária que recebe flores do patrão sodomita, existem homens invisíveis lavando vidros sobre os prédios que se envergonhariam das tramóias que escondem, se pudessem, mas não podemos então seguimos, e estamos atrasados para um compromisso de vida ou morte, ao lado um senhor que teria sido um belíssimo Duque de Winchester raspa freneticamente com uma tampa de garrafa a tampa do esgoto municipal, com uma gana de torcer os dedos e pingar a testa ele raspa olhando fixamente para a inutilidade do seu esforço, ele não tem nenhuma sinfonia para ouvir, amigos com quem debater futilidades da vida comum, ele perdeu os filhos e os netos, ele raspa porque não agüenta mais, e isso não é nada de novo, uma cena como outra qualquer e dois garotos espertos entrando na loja de conveniências para roubar balas de fruta, e eles sabem que podem ser pegos, mas a vida é um velho oeste ilimitado, então resta seguir e tentar absorver o mínimo, uma freira conversando com um bêbado, as flores da tarde ainda não nascidas, mas alguns já velhos demais esperando impávidos por um milagre e eu me sinto velho e uso a mesma calça há oito anos, uma excelente calça, eu penso, e isso me enche de confiança, então se começa a estalar os dedos porque talvez seja aquela música muito bonita que John Lennon fez para o filho life is what happens to you while you’re busy making other plans e aquilo me parece mais uma vez extremamente enigmático, mas não há tempo para mais nada, resta apenas entrar no edifício, desmarcar o compromisso o qual já se perdeu, sentar e escrever sobre algo que já não é mais meu – e é de quem quiser.

26.8.08

"somos o mito"

somos todos sísifos sifilíticos
sem ter o que comer
atravancamos em bifurcações
sem ter o que comer
indo ao fim do dia sem critério
repetindo o processo da pedra
sem ter o que comer
criamos amor, criamos guerra
sem ter o que comer
gente de ouro, gente de merda
sem ter o que comer
com a brancura de anjo falso seguimos
o peito quer explodir, as costas vergam
sem ter o que comer
seguimos pálidos para o abatedouro.

"adão e eva remix"

uma garotinha se aproxima
vagarosamente de um menino
e entrega ao menino uma bola.

o menino olha para a garotinha
muito desconfiado e pergunta:

“então qual é a armadilha?”

15.8.08

"Minha Mãe" (Vinicius de Moraes)

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.

* poema retirado do livro "O Caminho para a Distância", primeiro do poetinha, publicado em 1933, quando ele tinha 19 anos.

12.8.08

"beethoven"

a palavra “peripatético”, a belíssima
palavra “peripatético” era muito
usada para defini-lo.

seu rugido alto, os braços sacudindo
enquanto andava à procura
da nota perdida no bosque, ao lidar
com as provações do mundo,
e as suas eram provações enormes.

hoje resolvi escrever para você, Beethoven,
o salteador de monarcas, o impulso pagão,
a prova mais concreta de que deus existe,
avarento inconcebível, crateras no rosto,
atarracado de andar inclinado para frente,
como quem espera por um raio ou surto,
os cabelos crespos, a pele flamenga, suja.

quem só sentiu-se bem dentro da própria gruta
e estabeleceu a síndrome do dilema contínuo
entre céu e inferno: seu gênio sendo inferno puro,
o céu pouso suave em meio ao sangue derramado.

hoje resolvi escrever sobre você com fome.
porque também eu me sentia traído por algo
sem forma muito definida, anterior à forma.
sem nenhuma culpa sentia-me enjaulado,
a mesma síndrome: mais um surdo crônico.

na minha ilusão de mundo possível
talvez com fome eu pudesse sentir
um pouco da fome que você sentiu
e quem sabe ouvir o ruído mágico
para então continuar até o cancro.

11.8.08

"homem-cotoco"


Ali está ele, sobrando em calças velhas, espalhado pelas calçadas da cidade em que não há mais tempo, catando latas e pequenos bibelôs ou pedaços de coisas quebradas.

O homem de poucos membros principalmente sorri. Só existe desespero nos que são vaidosos a ponto de sentirem que têm muito a perder. O homem-cotoco magistralmente sorri, pois dificilmente perderá mais alguma coisa, e nem a vida é mais alguma coisa. O homem-cotoco sorri porque não está na disputa imbecil pelo tempo. Ele está dissolvido no cimento entre carros e restos de macarrão que as pombas renegaram.

O homem-cotoco sorri, eis a cena deplorável. O homem-cotoco, apesar de tudo, é mais feliz do que você e eu. Ele não tem pelo que existir e, portanto, tem direito a uma felicidade sublime, posto que não é uma felicidade material. A felicidade do homem-cotoco desnuda o homem de fé. Nada poderia ser mais cristão que a felicidade do homem-cotoco. Um homem que passou por uma provação e por isso pode sorrir como quem tem direito a isso, por ter passado por aquilo. O homem-cotoco está ao lado de Cristo, Joana D’Arc, Madre Teresa, Charles Manson.

Além do mais o homem-cotoco não sabe que não tem do que rir, e esse é o melhor motivo pelo qual um ri. É como algo que se espera muito. Enquanto se espera pela coisa, sente-se tremedeiras, dorme-se mal, anseia-se horrivelmente pela coisa, conta-se os dias e o estômago se retorce. Misteriosamente, pouco antes de a coisa acontecer, a alma se embota e o sangue foge à face, então somos tomados por um completo desinteresse pela possibilidade iminente da coisa.
Mas com o homem-cotoco não há possibilidade iminente. Ele é uma possibilidade resolvida para sempre. Pelo fato de a felicidade dos homens saudáveis ser no fundo um embuste, uma fábula que não se completa nada bem, pois que o homem saudável só é feliz enquanto espera, o homem-cotoco, por não fazer nada além de esperar, sente-se genuinamente livre do pavor da proximidade de qualquer concretização. É portanto feliz e mora num eterno interstício.

Enquanto isso, olhamos para o homem-cotoco, o feliz e satisfeito homem de poucos membros, e negamos a ele uma moeda ou ao menos os dentes. E dizemos que é porque não temos moeda, mas temos. E temos dentes também, apenas não mostramos e os deixamos apodrecer numa cena lamentável. Moedas, as temos muitas, não gostamos delas inclusive. Aliás, muitas vezes não sabemos o que fazer com elas. Elas provavelmente acabarão um dia no câmbio negro.

Não damos nossas moedas inúteis ao homem-cotoco porque precisamos esconder a nossa hipocrisia. Porque se déssemos seria como ser cúmplice de um sistema opressor de classes falido e corrupto que não repassa devidamente o dinheiro capitalizado pelos altos impostos etc e tal.

Mas no fundo queremos que o homem-cotoco desapareça com seu sorriso genuíno. Queremos que ele morra porque é mais feliz do que nós e não tem nada. Queremos que ele suma porque ele é a prova mais clara da nossa frustração. Ele deve, sim, desaparecer porque olhamos para ele e vemos nós mesmos desesperados e com pressa para sermos açoitados numa espécie de repartição sem fim. Devemos tirá-lo do mapa, o homem-cotoco, pois ele é a verdade inconcebível, que mora nua no fundo de um poço.

O homem-cotoco permanece entre a pastelaria chinesa e o amolador de facas. Ele sacode as moedas dentro do copo de plástico. Acima de tudo ele sorri. Seu sorriso é quase um desaforo e, por isso, ou damos dinheiro ou ignoramos, das duas uma, dois jeitos de chamar a morte. Porque foi descoberto que a morte vem da falta de atenção e da ganância. E o homem-cotoco é um ultraje, uma prova de que somos desatentos, se passamos reto. E uma prova de que somos gananciosos, se jogamos moedas.

Mas uma senhora surge num belíssimo carro, abre a janela e sorri para o homem-cotoco. Isso é uma revelação quase mítica e um clarão, uma aura absurdamente clara parece envolver a cena. O homem-cotoco se aproxima com as palmas das mãos sobre o asfalto quente, a senhora lhe coloca um cigarro na boca, acende o cigarro. Eles riem, sorriem, eles estão com as bochechas vermelhas. Conversam sobre algum assunto e o homem-cotoco parece estar dando à senhora algum conselho, pois permanece sorrindo, mas ela não. Seus traços estão suaves, mas compelidos. Algumas pessoas tropeçam nas calçadas diante da cena. Outras passam aos cochichos, indignadas.

A senhora abre a porta do carro, as pernas de seda, o salto de bico preto bem-polido. Ela se agacha e beija o homem-cotoco na testa, depois nos olhos, então na boca. O homem-cotoco segura as nádegas da senhora com suas mãos enormes como pés. A senhora volta para o carro, bate a porta, buzina duas vezes e vai embora. Eles acenam um ao outro. O chinês da pastelaria sai de trás do balcão com o pano de prato na testa. A senhora rica dos cabelos vermelhos extravagantes não havia jogado moedas nem ignorado o homem-cotoco. A senhora era a vida ínfima, o que sobra ao eterno recomeço. A vida pura, que passa pelas brechas e encontra o sórdido sem asas, correndo de volta para a caverna. É quando deus se contradiz e nos sentimos mortos. E estamos por um triz, mas temos pernas

3.8.08

“vinte e seis”

um dia, inevitavelmente, aconteceria.
o antigo poeta das linhas apócrifas
sobre fantasmas internos e naufrágios,
o infante terrível, o descabelado, o vil
sem regras daria lugar ao homem grave,
à besta milenar – homem sem pernas,
meio doce meio amargo meio homem,
a boca sem fim inclinada para baixo,
as leituras eslavas, a sutura do ódio
que prolifera para dentro em pústulas
e adquire a petulância de um mar parado.