somos aquilo
que está na crítica
dos que invejamos
silenciosamente
quiçá com abraços.
a abnegação
– ou a sabedoria,
como diriam barbas
– está em conceber
o teu passado morto
naquele que não
te reconhece.
27.9.07
23.9.07
"esboço para uma teoria dos erros fundamentais"
por muito tempo o Homem disse:
“oh, Deus, tenha piedade de nós!”
e matava homens por amor a Deus.
muitos anos depois, o Homem falou:
“oh, Homem, seja piedoso com Deus”!
e matou Deus por trás de um sorriso.
a morte de Deus pelo Homem recria
velhas fábulas de impérios decadentes.
Deus está preso, como o pai mutilado,
entre atmosferas que nem mesmo Dante.
agora o homem tornou-se minúsculo,
e Deus pende da forca num riso canalha.
“oh, Deus, tenha piedade de nós!”
e matava homens por amor a Deus.
muitos anos depois, o Homem falou:
“oh, Homem, seja piedoso com Deus”!
e matou Deus por trás de um sorriso.
a morte de Deus pelo Homem recria
velhas fábulas de impérios decadentes.
Deus está preso, como o pai mutilado,
entre atmosferas que nem mesmo Dante.
agora o homem tornou-se minúsculo,
e Deus pende da forca num riso canalha.
“os anjos exterminadores – matiné”
os olhos vazios da noite violentada,
o som agudo dos erros nos tímpanos,
a calma dos que não esperam mais nada:
sem contato, saímos todos do cinema.
uma frase do filme, anoto no guardanapo:
“eu sou um berço que balança
no oco da tumba onde faleço”.
jovem francesa possuída pelo diabo,
o sol são garfos de prata nos espelhos.
entregam-me um santinho, agradeço:
“venha também ao Templo do Oriente!
não se deixe enganar por falsas promessas,
venha agora encontrar suas respostas”.
um certo engulho – me apoio num poste.
“seja qual for o seu problema,
o ajudaremos a superá-lo e
não o deixaremos abater-se”.
vejo mulher sem rosto dobrar a rua.
grito por socorro, escorro até os pés.
ela me olha de volta, filha do diabo:
“não precisa dizer nada.
com apenas uma consulta,
eu posso lhe dizer tudo
que você precisa saber”.
o som agudo dos erros nos tímpanos,
a calma dos que não esperam mais nada:
sem contato, saímos todos do cinema.
uma frase do filme, anoto no guardanapo:
“eu sou um berço que balança
no oco da tumba onde faleço”.
jovem francesa possuída pelo diabo,
o sol são garfos de prata nos espelhos.
entregam-me um santinho, agradeço:
“venha também ao Templo do Oriente!
não se deixe enganar por falsas promessas,
venha agora encontrar suas respostas”.
um certo engulho – me apoio num poste.
“seja qual for o seu problema,
o ajudaremos a superá-lo e
não o deixaremos abater-se”.
vejo mulher sem rosto dobrar a rua.
grito por socorro, escorro até os pés.
ela me olha de volta, filha do diabo:
“não precisa dizer nada.
com apenas uma consulta,
eu posso lhe dizer tudo
que você precisa saber”.
"Balada dos Enforcados" (François Villon)
Irmãos humanos que ao redor viveis,
Não nos olheis com duro coração,
Pois se aos pobres de nós absolveis
Também a vós Deus vos dará perdão.
Aqui nos vedes presos, cinco, seis:
Quanto era cara viva que comia
Foi devorado e em pouco apodrecia.
Ficamos, cinza e pó, os ossos, sós.
Que de nossa aflição ninguém se ria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
Se dizemos irmãos, vós não deveis
Sentir desprezo, embora condenados
Tenhamos sido em vida. Bem sabeis:
Nem todos têm os sentidos sentados.
Desculpai-nos, que já estamos gelados,
Perante o filho da Virgem Maria.
Que seu favor não nos falte um só dia
Para livrar-nos do inimigo atroz.
Estamos mortos: que ninguém sorria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
A chuva nos lavou e nos desfez
E o sol nos fez negros e ressecados,
Corvos furaram nossos olhos e eis-
Nos de pêlos e cílios despojados,
Paralíticos, nunca mais parados,
Pra cá, pra lá, como o vento varia,
Ao seu talante, sem cessar, levados,
Mais bicados do que um dedal. A vós
Não ofertamos nossa confraria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
Meu príncipe Jesus, que a tudo vês,
Não nos entregues à soberania
Do Inferno, que só ouvimos tua voz.
Homens, aqui não cabe zombaria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
tradução Augusto de Campos
Não nos olheis com duro coração,
Pois se aos pobres de nós absolveis
Também a vós Deus vos dará perdão.
Aqui nos vedes presos, cinco, seis:
Quanto era cara viva que comia
Foi devorado e em pouco apodrecia.
Ficamos, cinza e pó, os ossos, sós.
Que de nossa aflição ninguém se ria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
Se dizemos irmãos, vós não deveis
Sentir desprezo, embora condenados
Tenhamos sido em vida. Bem sabeis:
Nem todos têm os sentidos sentados.
Desculpai-nos, que já estamos gelados,
Perante o filho da Virgem Maria.
Que seu favor não nos falte um só dia
Para livrar-nos do inimigo atroz.
Estamos mortos: que ninguém sorria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
A chuva nos lavou e nos desfez
E o sol nos fez negros e ressecados,
Corvos furaram nossos olhos e eis-
Nos de pêlos e cílios despojados,
Paralíticos, nunca mais parados,
Pra cá, pra lá, como o vento varia,
Ao seu talante, sem cessar, levados,
Mais bicados do que um dedal. A vós
Não ofertamos nossa confraria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
Meu príncipe Jesus, que a tudo vês,
Não nos entregues à soberania
Do Inferno, que só ouvimos tua voz.
Homens, aqui não cabe zombaria,
Mas suplicai a Deus por todos nós.
tradução Augusto de Campos
15.9.07
"a evolução do anjo"
para Uirá dos Reis
mais forte do que eu,
treme o anjo decaído.
entre gritos e gemidos
vaga lento pelas ruas
arruinado pelo crack.
corre frágil o coração
no fio fácil da navalha.
cheira cola de sapato
com as unhas pintadas:
limparam seus bolsos.
de mãos dadas com outro,
segue o amor, fica o anjo.
rumo à trilha desconhecida
ele tenta voar, ir embora.
anjo dos olhos que dizem:
“mate-me por favor, agora”.
estrelas no sangue escorrem
pela glote do anjo sem vida.
a sigla do abandono é a bílis,
suas tripas fustigadas, horas.
anjo dos olhos que suplicam:
“mate-me por favor, agora”.
13.9.07
"O carro vermelho"
Todos pensavam se aquilo poderia ser apenas passageiro. Ninguém andava ou se mexia. Esperávamos alheios, cada um com seu tipo de loucura. As luzes dos carros iluminavam os mendigos, que se retorciam em caretas indesejáveis. Ela esperava o ônibus enrolando os cabelos crespos muito claros. Muito clara ela também, do queixo proeminente.
Vaga ascendência africana, em pecado era polonesa. Nos cabelos dava em nó um coque, os cabelos soltavam-se gentilmente. Melhor: soltavam-se doucement, como se diz em francês. Neste caso é mais apropriado o francês. Então ela repetia o processo.
Eu tomava um suco e pensava sobre o meu futuro imediato escorado no balcão de uma lanchonete barata onde homens obesos discutiam futebol.
Ela esperava o ônibus, olhava para trás, um coque nos cabelos, olhava para os lados, o coque se desmanchava.De repente se levantou, tênis all-star e calça roxa colada, parou no meio da rua, estabanada, olhou para trás – para mim? – olhou para os lados. Estaria perdida? Seria o destino, mesmo atrasado após tantos equívocos?
Ela parecia perdida, um lado e depois outro, eu estava perdido, ela precisava de ajuda, eu precisava de... Era bela, o destino, serenatas, poemas, quedas d’água...
Cheguei perto: os pés distantes do chão, a calma forjada dos já não mais tão jovens.
- Você precisa de alguma coisa?
Seus olhos brilhavam. Era bela, o destino, um lado e depois outro. Então dobrou a esquina um carro vermelho, abriu-se a porta do carro e aquele era um excelente perfume, que vinha de dentro do carro vermelho. E dentro dele havia também um homem. E dentro do homem um sorriso malicioso. Porque era bela, o destino, e ele também sabia, o homem do carro vermelho, que dobrou a esquina e depois a levou de lá, o queixo proeminente, a culpa polonesa, vagas tribos africanas, o suco no bagaço.
12.9.07
"carta ao além para Jack Kerouac"
Querido Jack,
Hoje, quando andava pela beira da praia e vi uma gaivota se afogar, quer dizer, vi a gaivota mergulhar na água com vigor, mas não vi a gaivota voltar, eu pensei: “essa gaivota é como Jack Kerouac”.
E agora sua voz se repete na minha cabeça, se repete dizendo que nada ou ninguém poderá dizer nada sobre os trapos da nossa velhice. Por que justo hoje eu teria pensado em ti, meu velho amigo, pão pobre amassado, minha impossibilidade?
Na verdade, somos todos em algum momento deuses, quero dizer, todos somos deuses plenos, mas vez em quando reparamos nisso, em lampejos, lá fora as pessoas nas ruas andando do mesmo jeito, os mesmos semblantes, com questões urgentes e assassinas, deslizando sobre a navalha de um planeta aos pigarros, todas pessoas particulares num saco de abandonos, Kerouac, porque na miséria reside a peculiaridade soberana.
Mas essa carta não é para te incomodar com os meus lamentos, se nem bem somos tão amigos ainda, se ambos somos tímidos, porque falamos demais. Mas seríamos parecidos? Veja você: de uma pedra para a outra, enlouquecendo em frente a uma vela, escrevendo de 7 a 8 horas por dia, rindo da própria loucura, ainda criança dizendo: “eles riem de mim porque eu quero ser escritor”.
Agora vejamos eu: vergonha acima de tudo, mentira; vergonha, mentira, hesitação. Trinta exemplares de um livro de contos inacabados, dos quais me resta um, e pelos quais pouco me dediquei. Um pai vivo maravilhoso e todas as portas fechadas, emperradas, precisando óleo. Todos os sorrisos dependurados, abismos monstruosos, mas uma cama confortável, sem sonhos, enlouquecer e bater em disparada a cada vez mais atônita, mas para que lugar?
Mas essa carta não é também uma procura, Kerouac, enquanto ouço sua voz suave ainda falando para mim sobre o mito de uma tarde onde as pessoas riam de verdade e tudo parecia ter entrado nos eixos novamente, quando você podia andar do balcão do bar até a mesa e ter a boa sensação de que te observavam com cuidado, mas, ah, Jack, meu caro, não era nada disso que eu precisava te dizer...
Queria te dizer coisas lindas, coisas sobre âncoras nos mares africanos e olhos brilhantes sujos de fuligem. Queria dizer agora assim da sua forma mas sem te imitar que a forma nada mais é que nossa alma e que portanto o pensamento como reflexo da alma – assim como o corpo – não deve ser interrompido jamais. Deve seguir o fluxo que você observou enquanto olhava a enchente que enregelou os corações de Lowell e arruinou os negócios de seu pai. Porque você me ensinou que o fluxo verdadeiro corre sempre na direção de uma queda vertiginosa inadmissível e atraente, e o que não foi sua vida, Jack Kerouac?
E quem afinal eram aqueles hippies vagabundos exigindo de você uma bandeira? O que significa um passo depois do outro, Kerouac?
Movia-se como um escritor se deve mover. E não adianta eu tentar dizer que jeito de se mover é esse. Você viveu como um escritor, lavando frangos em frigoríficos, lavando pratos em São Francisco, escotilhas em longitudes sórdidas. Mas acima de tudo você escreveu. Quantas vezes o vôo solo não te causou uma estranha sensação de solidão, como se houvesse apenas o sol e nós fôssemos também o sol, agora, indefinidamente, perto de sermos postos em chamas, perto de nos tornarmos outra vez o magma, a localidade perplexa.
Mas e quanto ao ritmo, Kerouac, o que dizer sobre o ritmo? Porque você foi meu trigo e a primeira música real que escutei por horas. E na verdade pouco sabia do que você estava falando. Porque você falava de tudo ao mesmo tempo, da beleza, da pobreza, da tristeza, da anarquia, da triste beleza da pobre anarquia, enfim, você não dizia nada, você despejava seu palavrório louco que era ao mesmo tempo todas as coisas juntas e eu de repente podia imaginar o cais de Tanger, ou ver um lagarto verde-limão no teto de uma casa sem teto. Era pura música, eu lia estalando os dedos, e pensava em casas de chá na Antuérpia, minas na Rússia, bares enfumaçados, a silhueta de Monk, assassinatos no Central Park.
Isso não se faz, Kerouac, assassinar assim a mente e as possibilidades de um garoto. Mas essa carta também não era uma cobrança...
O que foi feito dos teus ossos tão firmes, meu camarada? Quero saber o que você acharia que restou para nós, os alucinados noturnos, os que sonham e não tem álibis, os assustados serenos, o que você me diria sobre os que se matam por ódio, com frases de paz?
Jack Kerouac, meu primeiro autor lido, gostaria que, de onde e sob a forma que estiver, você não pensasse nunca que, mesmo sem talento, eu iria manchar a sua imagem com homenagens difamatórias. O que eu quero de ti é sério, e não cabe a mais ninguém, mesmo que permaneça em silêncio.
O que eu quero saber é o que fazer com o riso que dobrou a esquina, com os dentes sobressalentes, o que fazer com as esquinas de cada sorriso, o que fazer com uma pessoa que, sem lembrar, pensa em sorrisos sem faces? Mas existem coisas acontecendo. Existem coisas acontecendo e todo mundo fala e discute as coisas assim como discutirão tantas outras coisas diferentes, sempre a mesma discussão. Existem coisas acontecendo como o espancamento de uma babá por jovens idiotas com sorte. Existem coisas e eu preciso opinar sobre elas, escrever sobre elas, fazer alguma coisa sobre essas coisas, para me livrar delas. E não há como se livrar das coisas acontecendo porque elas estão acontecendo agora e em toda parte, como se fosse há milênios.
Como escapar dessa vez, meu jovem escritor irrequieto? Como poder dizer “caguei” quando nos tornamos a merda? Quando não mais Gás Light e leituras de poesia zen? O que fazer quando o crime se torna andar na rua despreocupado?
Existe, sim, algo para fazer. Mas pensando no que de fato eu queria te dizer, vejo como liberar as rédeas e deixar fluir acaba se tornando carne para ameba. Eu vejo seus olhos estranhamente em uma parede branca, eu ouço palmas e gargalhadas, escuto Stravinsky e John Coltrane conversando ao pé do seu ouvido, sinto os trovões e sei que eles não passam, no fim, de carne para ameba.
E agora eu finalmente me lembrei porque pensei em ti, meu velho desconhecido. Porque estou agora cometendo um erro, mais um erro de amor, mais um ato incompreendido, porque estou agora sozinho e pálido, não exatamente desnutrido, mas temente a deus, porque enfim pensei outra vez em deus, mas não por deus pensei em ti, pensei em ti porque estou numa casa que não é minha, alimentando um gato que não é meu – já que os gatos não são de ninguém – pedi cerveja no bar da esquina e na falta de carinho estou ouvindo Stravinsky, o que não deixa de ser uma boa pedida para quem não tem nada, e nem mesmo sabe conjugar o verbo ter. Mas acho que, assim como você um dia, estou mentindo porque, no fundo, pensei em ti porque lembrei de uma guria.
Hoje, quando andava pela beira da praia e vi uma gaivota se afogar, quer dizer, vi a gaivota mergulhar na água com vigor, mas não vi a gaivota voltar, eu pensei: “essa gaivota é como Jack Kerouac”.
E agora sua voz se repete na minha cabeça, se repete dizendo que nada ou ninguém poderá dizer nada sobre os trapos da nossa velhice. Por que justo hoje eu teria pensado em ti, meu velho amigo, pão pobre amassado, minha impossibilidade?
Na verdade, somos todos em algum momento deuses, quero dizer, todos somos deuses plenos, mas vez em quando reparamos nisso, em lampejos, lá fora as pessoas nas ruas andando do mesmo jeito, os mesmos semblantes, com questões urgentes e assassinas, deslizando sobre a navalha de um planeta aos pigarros, todas pessoas particulares num saco de abandonos, Kerouac, porque na miséria reside a peculiaridade soberana.
Mas essa carta não é para te incomodar com os meus lamentos, se nem bem somos tão amigos ainda, se ambos somos tímidos, porque falamos demais. Mas seríamos parecidos? Veja você: de uma pedra para a outra, enlouquecendo em frente a uma vela, escrevendo de 7 a 8 horas por dia, rindo da própria loucura, ainda criança dizendo: “eles riem de mim porque eu quero ser escritor”.
Agora vejamos eu: vergonha acima de tudo, mentira; vergonha, mentira, hesitação. Trinta exemplares de um livro de contos inacabados, dos quais me resta um, e pelos quais pouco me dediquei. Um pai vivo maravilhoso e todas as portas fechadas, emperradas, precisando óleo. Todos os sorrisos dependurados, abismos monstruosos, mas uma cama confortável, sem sonhos, enlouquecer e bater em disparada a cada vez mais atônita, mas para que lugar?
Mas essa carta não é também uma procura, Kerouac, enquanto ouço sua voz suave ainda falando para mim sobre o mito de uma tarde onde as pessoas riam de verdade e tudo parecia ter entrado nos eixos novamente, quando você podia andar do balcão do bar até a mesa e ter a boa sensação de que te observavam com cuidado, mas, ah, Jack, meu caro, não era nada disso que eu precisava te dizer...
Queria te dizer coisas lindas, coisas sobre âncoras nos mares africanos e olhos brilhantes sujos de fuligem. Queria dizer agora assim da sua forma mas sem te imitar que a forma nada mais é que nossa alma e que portanto o pensamento como reflexo da alma – assim como o corpo – não deve ser interrompido jamais. Deve seguir o fluxo que você observou enquanto olhava a enchente que enregelou os corações de Lowell e arruinou os negócios de seu pai. Porque você me ensinou que o fluxo verdadeiro corre sempre na direção de uma queda vertiginosa inadmissível e atraente, e o que não foi sua vida, Jack Kerouac?
E quem afinal eram aqueles hippies vagabundos exigindo de você uma bandeira? O que significa um passo depois do outro, Kerouac?
Movia-se como um escritor se deve mover. E não adianta eu tentar dizer que jeito de se mover é esse. Você viveu como um escritor, lavando frangos em frigoríficos, lavando pratos em São Francisco, escotilhas em longitudes sórdidas. Mas acima de tudo você escreveu. Quantas vezes o vôo solo não te causou uma estranha sensação de solidão, como se houvesse apenas o sol e nós fôssemos também o sol, agora, indefinidamente, perto de sermos postos em chamas, perto de nos tornarmos outra vez o magma, a localidade perplexa.
Mas e quanto ao ritmo, Kerouac, o que dizer sobre o ritmo? Porque você foi meu trigo e a primeira música real que escutei por horas. E na verdade pouco sabia do que você estava falando. Porque você falava de tudo ao mesmo tempo, da beleza, da pobreza, da tristeza, da anarquia, da triste beleza da pobre anarquia, enfim, você não dizia nada, você despejava seu palavrório louco que era ao mesmo tempo todas as coisas juntas e eu de repente podia imaginar o cais de Tanger, ou ver um lagarto verde-limão no teto de uma casa sem teto. Era pura música, eu lia estalando os dedos, e pensava em casas de chá na Antuérpia, minas na Rússia, bares enfumaçados, a silhueta de Monk, assassinatos no Central Park.
Isso não se faz, Kerouac, assassinar assim a mente e as possibilidades de um garoto. Mas essa carta também não era uma cobrança...
O que foi feito dos teus ossos tão firmes, meu camarada? Quero saber o que você acharia que restou para nós, os alucinados noturnos, os que sonham e não tem álibis, os assustados serenos, o que você me diria sobre os que se matam por ódio, com frases de paz?
Jack Kerouac, meu primeiro autor lido, gostaria que, de onde e sob a forma que estiver, você não pensasse nunca que, mesmo sem talento, eu iria manchar a sua imagem com homenagens difamatórias. O que eu quero de ti é sério, e não cabe a mais ninguém, mesmo que permaneça em silêncio.
O que eu quero saber é o que fazer com o riso que dobrou a esquina, com os dentes sobressalentes, o que fazer com as esquinas de cada sorriso, o que fazer com uma pessoa que, sem lembrar, pensa em sorrisos sem faces? Mas existem coisas acontecendo. Existem coisas acontecendo e todo mundo fala e discute as coisas assim como discutirão tantas outras coisas diferentes, sempre a mesma discussão. Existem coisas acontecendo como o espancamento de uma babá por jovens idiotas com sorte. Existem coisas e eu preciso opinar sobre elas, escrever sobre elas, fazer alguma coisa sobre essas coisas, para me livrar delas. E não há como se livrar das coisas acontecendo porque elas estão acontecendo agora e em toda parte, como se fosse há milênios.
Como escapar dessa vez, meu jovem escritor irrequieto? Como poder dizer “caguei” quando nos tornamos a merda? Quando não mais Gás Light e leituras de poesia zen? O que fazer quando o crime se torna andar na rua despreocupado?
Existe, sim, algo para fazer. Mas pensando no que de fato eu queria te dizer, vejo como liberar as rédeas e deixar fluir acaba se tornando carne para ameba. Eu vejo seus olhos estranhamente em uma parede branca, eu ouço palmas e gargalhadas, escuto Stravinsky e John Coltrane conversando ao pé do seu ouvido, sinto os trovões e sei que eles não passam, no fim, de carne para ameba.
E agora eu finalmente me lembrei porque pensei em ti, meu velho desconhecido. Porque estou agora cometendo um erro, mais um erro de amor, mais um ato incompreendido, porque estou agora sozinho e pálido, não exatamente desnutrido, mas temente a deus, porque enfim pensei outra vez em deus, mas não por deus pensei em ti, pensei em ti porque estou numa casa que não é minha, alimentando um gato que não é meu – já que os gatos não são de ninguém – pedi cerveja no bar da esquina e na falta de carinho estou ouvindo Stravinsky, o que não deixa de ser uma boa pedida para quem não tem nada, e nem mesmo sabe conjugar o verbo ter. Mas acho que, assim como você um dia, estou mentindo porque, no fundo, pensei em ti porque lembrei de uma guria.
Mas por que, Jack? Por que você não parou e se tornou um velho gordo e faceiro? Porque sua questão era outra e veja só no que deu. Eu que te amo e te li um bocado não tenho bolas o suficiente para admitir o erro da paixão, não tenho crises tão graves a ponto de me manter sóbrio, mais um fígado de vidro flagelado e uma leve hipersensibilidade no cólon do intestino. Entendo tua lira e me arrepio, sei que é preciso navegar apesar de tudo, e sinto que estamos tão longe mas tão juntos, porque sei que a solidão tem olhos sorridentes, mas no fundo temo porque a mesma solidão, quando abre a boca, mostra seus dentes podres que, apesar do sorriso de olhos, não podemos simplesmente dizer “é a vida”. Você me ensinou que não se diz “é a vida”. Você procurou a lápide até encontrá-la. Você jogou a lápide fora. Ajude-me por deus a encontrá-la outra vez.
Leonardo Marona
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2007
9.9.07
“Um instante para Zé Ramalho”
roubando castanhas
de um pote vulgar
no que amanhecem
morangos na toalha
em dadaísmo tardio.
e o pano sujo
do fim da festa
lembra a frase
daquela música
e um pouco mais,
além e para o lado
misterioso do nosso
conhecimento. é tarde.
“baby, nossa relação
acaba assim, assim...
conte para as amigas”
aquelas simpáticas,
aquelas prestativas,
aquelas ordinárias...
“conte para as amigas
que tudo, tudo foi mal”
conte que no vão
dos novos sentimentos
pousa a escuridão
como enxame violento
sobre o couro das horas.
talvez que antes
de sepultada a beleza
estivesse num sorriso
rasgado de silêncios.
novas palavras,
como gárgulas,
salivando rosas.
de um pote vulgar
no que amanhecem
morangos na toalha
em dadaísmo tardio.
e o pano sujo
do fim da festa
lembra a frase
daquela música
e um pouco mais,
além e para o lado
misterioso do nosso
conhecimento. é tarde.
“baby, nossa relação
acaba assim, assim...
conte para as amigas”
aquelas simpáticas,
aquelas prestativas,
aquelas ordinárias...
“conte para as amigas
que tudo, tudo foi mal”
conte que no vão
dos novos sentimentos
pousa a escuridão
como enxame violento
sobre o couro das horas.
talvez que antes
de sepultada a beleza
estivesse num sorriso
rasgado de silêncios.
novas palavras,
como gárgulas,
salivando rosas.
"A velhice pede desculpas" (Cecília Meireles)
Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.
Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.
Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.
Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.
Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.
1958
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.
Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.
Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.
Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.
Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.
1958
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