21.12.05

"A felicidade anda bêbada de ônibus"

Entrei no ônibus sorrindo e cambaleando, como qualquer sujeito do lado de quem se pode dormir, e fui para o fundo, chacoalhando com os buracos do asfalto. Havia algumas caras mortas e três meninas no fundo.

Assim que sentei me virei para trás: vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela do ônibus. Um reflexo cansado, ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava do lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, então pensei: “que diabos!”, porque afinal sou um sujeitinho distraidamente colonizado que gosta de pensar nos diabos, faltando para mim apenas o chapéu de feltro cor de oliva, um cigarro enrolado manualmente na ponta do bico e uma garrafa de xerez desarrolhada pela metade.

Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, franja cai nos olhos e me pega de jeito, corpo duro, vida dura, muito mimo, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela chamava mais a minha atenção do que as outras duas juntas, a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes do seu sorriso falso. Olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para...

Ria de mim. Começou a me apontar. E eu pensei: “Quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais singelo e desapercebido. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo. Com ela levou minha ilusão. Eu ri eu ri eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar pra ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafa e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo. Era um riso com tantos pequenos detalhes imensos, que me senti na obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo na beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, tudo passa, eu passo.

Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que grita tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de mesa e chá. Mas eu rir de volta para ela era inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".

As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo me convencer de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça suas amigas... Sou apenas um bêbado".

Me levantei, porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da noite molhada. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Era melhor ver do que pensar nela. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, me chamo Leonardo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que ela ainda seja engraçada. A felicidade abriu a boca e ficou assim, sem me engolir. Disse por fim: "Muito prazer, Leonardo, me chamo Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.
Olhei pela janela. Ela estava ali, com a cabeça de fora. Tudo rápido demais porque mágico. O mundo ainda tinha vida na sua melhor metade. "Fique com deus", li nos lábios da Graça, da Felicidade. "Você...", eu disse de volta, meu rosto era só uma parte que sumia na escuridão das vontades. Até mais ver, Felicidade.

3 comentários:

Anônimo disse...

Gostei desse é o primeiro que leio q se identifica o seu nome ... bonitinho Leo tá bem suave ... e gostoso de ler ... uma coisa boa é descrever sobre a felicidade atraves do sorrir, do engraçado, do não entender nada e em essencia da coisas/detalhes/situações simples ...
"Um motivo para" ... estar e ser feliz! (completando) ...
Olha as vezes eu penso q para sermos FELIZES numa relação amorosa,principalmente,é ver o q podemos dar/oferecer para o outro e não cobrar/esperar q as pessoas façam para nós .... não sei pensei nisto ontém .... lá no banheiro de casa ... e associando ao seu texto creio q a felidade podemos estar disposto a oferecer e não a buscar em 1001 pessoas e nunca dar certo pq verdadeiramente não a encontramos ....
BJO e obrigado pelo espaço ... meu amigão ... q pra vc eu sempre pago pau !!!!

Anônimo disse...

Outro dia li num calendario pregado na parede de um boteco em Laranjeiras a seguinte frase (na verdade esquecia a frase, mas a ideia eh que vale): quem ama liberta. o amor verdadeiro consiste em altruismo, coisa quase impossivel quando se fala de seres humanos. Acho que nada tem a ver com teu texto, Leo, mas o comentario da Laiza me fez recordar. Um abraco.

Anônimo disse...

LEGAL!!! É a pura verdade ... e como dá para refletir nessa pequena frase a qual vc esqueceu mas q mencionou ... diria causa e efeito ... se associa-la ao meio social ... veremos o tanto q estamos presos, reprendidos no dia a dia ... um dialogo seco ou com um sorriso obrigado ás pessoas, tensão .... ou seja, é rarissimo mesmo termos este sentimento com o proximo ... pois se não já estariamos libertados deste mundo ... terrível, cruel ... mas q tem um valor existencial muito grande .... pura contradição!