6.11.23

"escavação de juca"

para jussara beatriz, minha mãe

 

tenho esmolado informações há anos,

mas não este adulto e violado humano

e sim uma criança que, sem saber nada,

tornou-se adulta muito antes da hora,

ao mesmo tempo conservando choro,

indecisão e raiva juvenis, não as armas

que ajudam na busca o adulto aleijado.

 

criança de história pessoal inventada,

pus teu corpo nulo a viajar continentes,

guardei teus pés difíceis e tua loucura.

tua mãe louca, teu pai louco, teu irmão

prestes a se deixar levar por alienígenas

te levaram a querer estudar psicologia,

mas você nunca passou no psicotécnico.

 

na sociologia acabou não sendo feliz,

ajeitava os cálculos de fome e amor

à uma pátria esfarelada feito bolacha

velha de tão velho que era o tempo.

hoje penso que talvez você soubesse,

mas eu ainda pensava na eternidade

que traz história na carne, no sangue,

que explode em defeitos e consolos,

faz da linha humana promessa frágil.

 

escrevo, mãe, como podes perceber,

imitando os cacoetes de drummond,

pois é a coisa que mais gosto agora,

já que isso é para saber algum rastro

do que se amou ou que é impossível

amar e não se pode esquecer nunca,

por este não saber de nada contínuo

que deforma a natureza dócil da reta

numa curva de mil perigos e bombas.

 

mas é no meu amor por renato russo,

por cazuza e todos os anjos da morte,

pela mitologia da amizade em milton,

seus comparsas de alucinações astrais,

que me ligo a ti por loucura umbilical.

certo ódio contra nosso aniquilamento

uniu para sempre em sutis hematomas,

a sorte ruim de duas crianças violadas.

 

nos cruzaremos, eu sei, ainda com raiva,

no lugar onde todos são crianças recentes.

enquanto isso, quero trazer um boa-nova:

o pai ainda te ama muito, acima de tudo,

mais do que a mim, o que me deu alegria.

ele sonha contigo há trinta e quatro anos.

 

hoje sou bem mais velho do que quando

vocês dois tiveram a obrigação de sumir

do embate físico pelo que nunca terá sido

tempo perdido, sexo verbal, blues piedoso

e que, sem ser algo extraordinário, avança

mais forte do que aquilo que permaneceu.

 

sou, como adulto quase velho, mais igual

ao meu pai do que a ti, a não ser quando

me dizem que sou bonito, apesar de louco,

ou mesmo, nos casos raros, que sou bom.

estou certo de que, se sou bom, é porque

tu foste embora muito cedo, do contrário,

eu teria te oferecido um trabalho imenso.

é bom não ter que me desculpar por isso.

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