8.11.23

"o que é alegria"



alegria é o joão gilberto

sem saber dirigir dirigindo

um carro atolado na lama

lotado com novos baianos:

o amor, a marha engatada.

 

alegria são as coxas de maradona,

os dentes de martha argerich,

o sorriso complicado

de antônio abujamra,

as mãos gregas e longas

de celso martinez corrêa,

dedos dízimas periódicas

no gesto de pixinguinha,

nas veias de conceição tavares

as sobrancelhas de darcy ribeiro,

áfrica, ou o suor compartilhado

por corpos fáceis de carnaval.

 

alegria é chorar ouvindo

música pensando só deus

poderia ter criado isso:

um vento que faz som

e expressa diretamente

à carne, corpo cansado

nas mãos dos bonecos

de deus – isso é alegria:

ser um boneco de deus

sem pagar nada por isso.

 

alegria são velhas e velhos

poetas que quebram o nariz

do tempo e nos perguntam:

vocês ainda sentem prazer?

 

alegria são os olhos do cão,

a yoga específica dos gatos,

bichos com nariz amassado,

velhos se beijando na boca,

jovens espertos em silêncio.

 

alegria são amigos e amigas

que se chamam por apelidos

roubados de livros malditos,

personagens que comunicam

com o movimento do olhos.

alegria é quem vem de fora,

decodifica a nobre sintonia

e oferece algo sem receitar.

 

telefones que são escritos

na poeira de janelas sujas

nos veículos da juventude

quando temos quinze anos

e o amor é a espinha eterna

no centro de uma aberração

que é nosso maior esquema.

 

olhos incendiados pelo sol

ou uma chuva que se perca.

6.11.23

"escavação de juca"

para jussara beatriz, minha mãe

 

tenho esmolado informações há anos,

mas não este adulto e violado humano

e sim uma criança que, sem saber nada,

tornou-se adulta muito antes da hora,

ao mesmo tempo conservando choro,

indecisão e raiva juvenis, não as armas

que ajudam na busca o adulto aleijado.

 

criança de história pessoal inventada,

pus teu corpo nulo a viajar continentes,

guardei teus pés difíceis e tua loucura.

tua mãe louca, teu pai louco, teu irmão

prestes a se deixar levar por alienígenas

te levaram a querer estudar psicologia,

mas você nunca passou no psicotécnico.

 

na sociologia acabou não sendo feliz,

ajeitava os cálculos de fome e amor

à uma pátria esfarelada feito bolacha

velha de tão velho que era o tempo.

hoje penso que talvez você soubesse,

mas eu ainda pensava na eternidade

que traz história na carne, no sangue,

que explode em defeitos e consolos,

faz da linha humana promessa frágil.

 

escrevo, mãe, como podes perceber,

imitando os cacoetes de drummond,

pois é a coisa que mais gosto agora,

já que isso é para saber algum rastro

do que se amou ou que é impossível

amar e não se pode esquecer nunca,

por este não saber de nada contínuo

que deforma a natureza dócil da reta

numa curva de mil perigos e bombas.

 

mas é no meu amor por renato russo,

por cazuza e todos os anjos da morte,

pela mitologia da amizade em milton,

seus comparsas de alucinações astrais,

que me ligo a ti por loucura umbilical.

certo ódio contra nosso aniquilamento

uniu para sempre em sutis hematomas,

a sorte ruim de duas crianças violadas.

 

nos cruzaremos, eu sei, ainda com raiva,

no lugar onde todos são crianças recentes.

enquanto isso, quero trazer um boa-nova:

o pai ainda te ama muito, acima de tudo,

mais do que a mim, o que me deu alegria.

ele sonha contigo há trinta e quatro anos.

 

hoje sou bem mais velho do que quando

vocês dois tiveram a obrigação de sumir

do embate físico pelo que nunca terá sido

tempo perdido, sexo verbal, blues piedoso

e que, sem ser algo extraordinário, avança

mais forte do que aquilo que permaneceu.

 

sou, como adulto quase velho, mais igual

ao meu pai do que a ti, a não ser quando

me dizem que sou bonito, apesar de louco,

ou mesmo, nos casos raros, que sou bom.

estou certo de que, se sou bom, é porque

tu foste embora muito cedo, do contrário,

eu teria te oferecido um trabalho imenso.

é bom não ter que me desculpar por isso.

3.11.23

"o silêncio dos poetas"


finalmente estão em silêncio, alguns.

outros ainda rosnam, já que tragédias

são como prêmios de conduta poética

quando o verso já não mais prevalece

porque a realidade é esse prato cheio

e os cadáveres certos são o cardápio.

 

me interessam mais os que não sabem

o que dizer, o que pensar, o que fazer

– os que não sabem nem o que sentir.

nunca houve paz entre seres humanos,

e a paz entre os poetas é a indiferença

porque não tivemos determinada sorte

da qual abusou aquela ou aquele mau

poeta, que é um cidadão de carteirinha.

 

porque poetas são talvez como cavalos

– os cavalos sem dúvida mais bonitos –

correndo atrás de coisas que são vistas

na limitação de um cabresto de sonhos

que impede a visão da tristeza coletiva

e dá méritos a peitos estufados de raiva

na corrosão do que teria sido ao menos

uma firme irmandade através da dúvida

ou mesmo através da empatia duvidosa.

 

me incomodam poetas que têm certeza,

porque retificam o propósito da poesia,

que é curva infinita da qual se acumula

a crosta de derrota que, como os cavalos,

leva a beleza adiante em meio aos gritos,

apesar de um cabresto que define a falsa

convicção de que os cadáveres são a arte

que nos falta e gritá-los seja suave trilha,

caminho que nos traga alguma redenção

e nos afaste do ódio que temos por todos.

 

se pelo menos nos admitíssemos odiosos

ou odiáveis, mas sem o dedo que aponta,

haveria tranquilidade para sentar e chorar.

mas amamos a nós mesmos em demasia

para compensar outro amor exterminado

na ideia equivocada do amor e do cavalo.