26.8.23

"poema para maria pelo pernoite"


a geladeira, apesar de fria,

tem uma parte superfria.

 

ao lado da parte superfria,

a majoritária parte só fria

torna-se uma parte morna.

 

a parte superfria é causa

da hegemonia do morno

na prisão das geladeiras.

 

mas na geladeira da maria,

a pobre manteiga francesa

foi posta na parte superfria.

 

raro pensar pobre francesa,

mas foi assim que me saiu.

 

foi então que disse a maria

que manteiga ia muito mal

guardada na parte superfria.

 

assim pus a manteiga na pia

e disse presta atenção, maria,

a manteiga é o mediterrâneo,

o sonho de fogo da geladeira.

 

o frio seja frio, não superfrio,

e o quente seja marca moura,

fé gordurosa no sol da manhã.

"ao velho abujamra"


tem os que digam

que sua real paixão

eram os cavalinhos.

 

a dentadura inglesa

santificava defeitos

para honrar sarjeta.

 

seu ódio ao lirismo,

suspensório arriado

nas coxias do medo.

 

exaurido de poesia,

largava ao coração

a labuta do pânico.

 

agora não encontro

uma alma sem hora,

uma rua sem medo.

 

levei um baita susto,

vi você sem camisa

comendo o cenário

como um canastrão.

 

me rogou uma praga

e previu meu futuro

com dentes de rato.

 

santa belinha do cru

milagre que te tenha!

 

agora fico nesse grilo:

não fosse a tua praga

e eu ainda teria cabelo.

 

mas nunca vi alguém

dizer “que bobagem”

daquele jeito só seu,

como quem desliza

num líbano de lama.

 

fecho os olhos, ouço

sua voz gritar “senhor

fazei-me rapaz casto,

mas não exatamente”.

9.8.23

"o milagre do esporte"



O ator é um jogador de futebol

José Celso Martinez Corrêa

 

a mais perfeita beleza

dos esportes de massa:

no centro do seu ápice

pelo amor dos deuses,

alguns diriam capricho,

ou porque a primavera

é quando não se espera

mais nada, daí o milagre

que leva o venal fascista

ou aquele que animaliza

pessoas e que pessoaliza

animais, ou tortura a fé

que precisa do erro da fé

para enfim se carnificar

no monumento de papel

que se fez da nossa tribo,

mas até mesmo políticos

assassinos em série, pele

rasgada na violação fatal

que acorrenta a maldade

nas canelas do mistério,

este mesmo que se serve

da fáustica fauna humana

para revelar pelo êxtase

a parte não ferida do mau

que ronda os seres vivos,

porque no fundo do ódio

habita o sorriso do amor.

e que espetáculo é saber

o brutal em estado bruto,

uma inocência selvagem,

gandaia original do corpo

que se perverte na suave

expressão de uma criança:

fagulha de vida nos olhos

daquele que nunca amou.

5.8.23

"darcy ribeiro luta contra o câncer na roda viva"


há de haver um lugar

para espairecer, chupar o dedo,

um lugar para dizer palavrão.

tem uma gotinha de sangue negro

que dá a nós um certo azeite,

como tem azeite a gente italiana

e tem azeite a gente moura,

mas não tem o europeu puro,

a gente da floresta tem de sobra,

e que não se vende

para comprar cachaça.

a mulher é o ápice da raça,

mesmo que o homem

não seja de se jogar fora,

o que importa na verdade

é namorar três de cada vez,

porque, depois de dez anos,

todo casamento se torna

um pouco incestuoso

e com três de cada vez

não há perigo em se casar.


2.8.23

"xará-mor"

para leonardo fróes

 

olho para suas mãos,

acariciam o volante

de um carro japonês

que não existe mais.

elas nunca tremem,

lembram um pouco

a pele de uma árvore.

 

tenho as angústias

da vida paralisante,

da impossibilidade

de ser um escritor.

você tem angústia

porque as pessoas

não procuram nada

nos olhos furtivos

que passam na rua.

 

olhando nos meus

você me diz o maior

poema do mundo

são olhos perplexos

que se enxergam

um dentro do outro

por um segundo

no cerne do terror.