27.7.23

"como se escutasse ennio morricone"

 

um violino boia na água,

sinto falta das pessoas

que mais amo, lembro

da minha mãe, estranho

pensar que ela morreu

já faz tempo e é como

se morta ela nunca mais

saísse de perto de mim,

e ainda acontece que eu

não preciso cuidar dela:

é ela que cuida de mim.

é um privilégio, penso,

de não se morrer ainda.

um amigo escava o chão,

outro conhece as ruínas

de um tempo muito lejos

quando a selvageria era

algo que vinha do coração.

um terceiro evacua sangue

e aqui eu sinto falta talvez

de uma espécie de coração

que reunia os erros bonitos

cometidos na feia intenção

de reservar ainda tempo

para que pulsasse ânimo

de esticar ainda a corda

e apertar a mão no bolso

como alguém que precisa

de toda coragem do mundo

quando as balsas se perdem

na direção de outro infinito,

esfera de mistério na fratura

de um velho vulcão cansado.

4.7.23

"galos"

nothing is too wonderful

to be true

michael faraday

 

 

você reclama que eu nunca escrevo

nada que traga o seu nome dentro.

é verdade, acho que quando olho

você vejo as coisas que eu tenho,

mas não gosto, tenho medo de ter,

são mais eu do que quero de mim.

 

é possível amar aquilo que espelha

nossas mais límpidas imperfeições?

acho que você também se pergunta

isso quando pensa em mim, é como

usar uma isca que é também o peixe.

 

eu amo a armadilha do nosso amor

porque você é um perigo que trago

na costela do mais violento abraço.

talvez eu nunca consiga te embalar,

como você faz comigo aos sopapos,

pois vejo a cratera no topo da crina

que nos torna galos de abate lógico.

 

nos conhecemos aos prantos, a vida

tem sido essa jornada úmida de luz.

resgatamos a cada estação corações

sufocados pelo cansaço de dizer sim.

 

acho que não sabemos quem somos

e precisamos de um amor definitivo.

necessito me furtar ao ódio de mim,

às vezes é difícil não ser despejado.

 

que avance nossa jornada carmesim,

que possamos lamber feridas podres,

aceitar o que trazemos já como sina.

e baixar a crina, ferir o beijo na testa.