22.2.21

"o caso dos caquinhos"

para suzana, adelaide, jô e natércia

 

dia desses quebrei uma tigela de vidro,

uma que era da minha sogra, ela usava

para fazer macarrão com atum, a tigela

perfeita para se fazer essa receita dela.

 

simplesmente apanhei os cacos na pia,

coloquei dentro de uma caixa de papel,

pensei em como eu era bondoso porque

era capaz de pensar na pessoa que iria

recolher a caixa e não cortaria as mãos.

 

e tomei a decisão de não contar nada,

o que, depois de perceber que a tigela

havia mesmo se quebrado, pois não era

possível que tivesse sumido, então tive

que me declarar culpado, a posteriori,

assim pensei que aquilo era uma falha

de caráter; uma amiga minha me falou

que escondi porque eu não tinha mãe.

 

agora penso que era também porque

eu nunca pude olhar com facilidade,

da minha posição de órfão precoce,

alguém ficar infeliz por algo que fiz.

 

minha mãe espiritual então me disse:

os homens vieram ao mundo apenas

e tão somente para quebrar as coisas.

isso me serviu melhor do que pensar

que eu era um criminoso sem caráter

e que, no fim das contas, é bem bom

ter várias mulheres sábias por perto.

 

isso me fez pensar em outra conexão:

essa minha amiga também escritora,

a primeira escritora que eu conheci,

acaba de escrever uma novela sobre

cacos que juntamos quando somos

quebrados por dentro da nossa vida

pela morte de pessoas que amamos.

 

senti vontade de dizer a ela que, sim,

mesmo escondendo muitos cacos ruins

debaixo de tapetes que não eram nossos,

chegamos aqui de pé, pobres flagrantes

do amor que nos consumiu e nos tornou

a brasa calma de um bombardeio aéreo –

resta comprar uma tigela e pedir perdão.  


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