23.2.21

"boa viagem, velhinho"

para lawrence ferlinghetti

 

você era o espadachim dos mendigos,

na criação de um marinheiro francês,

você deu a volta ao mundo para cruzar

com os da sua laia, e eles não duraram

tanto quanto você – que vida, maestro!

eu imagino você arrotando coney island

depois do almoço feito de comida crua

e andando com as mãos geladas dentro

de bolso de calças velhíssimas e sonhos

de uma criança, pensando: eu enganei

todos eles, que me imaginam um sábio,

enquanto sabe que o parque da mente

é muitas vezes o estacionamento vazio

onde paramos nossos carros capotados

que não sabemos dirigir, mas já é hora,

vieram agora arruaceiros atrás de você,

vá lá, foi você quem inventou isso tudo,

agora se vire e descanse sua cuca de nós.

22.2.21

"o caso dos caquinhos"

para suzana, adelaide, jô e natércia

 

dia desses quebrei uma tigela de vidro,

uma que era da minha sogra, ela usava

para fazer macarrão com atum, a tigela

perfeita para se fazer essa receita dela.

 

simplesmente apanhei os cacos na pia,

coloquei dentro de uma caixa de papel,

pensei em como eu era bondoso porque

era capaz de pensar na pessoa que iria

recolher a caixa e não cortaria as mãos.

 

e tomei a decisão de não contar nada,

o que, depois de perceber que a tigela

havia mesmo se quebrado, pois não era

possível que tivesse sumido, então tive

que me declarar culpado, a posteriori,

assim pensei que aquilo era uma falha

de caráter; uma amiga minha me falou

que escondi porque eu não tinha mãe.

 

agora penso que era também porque

eu nunca pude olhar com facilidade,

da minha posição de órfão precoce,

alguém ficar infeliz por algo que fiz.

 

minha mãe espiritual então me disse:

os homens vieram ao mundo apenas

e tão somente para quebrar as coisas.

isso me serviu melhor do que pensar

que eu era um criminoso sem caráter

e que, no fim das contas, é bem bom

ter várias mulheres sábias por perto.

 

isso me fez pensar em outra conexão:

essa minha amiga também escritora,

a primeira escritora que eu conheci,

acaba de escrever uma novela sobre

cacos que juntamos quando somos

quebrados por dentro da nossa vida

pela morte de pessoas que amamos.

 

senti vontade de dizer a ela que, sim,

mesmo escondendo muitos cacos ruins

debaixo de tapetes que não eram nossos,

chegamos aqui de pé, pobres flagrantes

do amor que nos consumiu e nos tornou

a brasa calma de um bombardeio aéreo –

resta comprar uma tigela e pedir perdão.  


4.2.21

"trinta e nove"

 

é bom que finalmente

seja muito bom estar

no radar das pessoas.

aprendo a amar assim:

fecho os olhos e ouço

o que me diz o contorno

de alguns rostos e pés

dentro dos olhos fechados.

hoje começo a jornada

de abandono dos anos trinta

na carcaça do meu ânimo

e depois será para sempre:

mudar o som do destino.

quarenta, cinquenta,

sessenta, setenta, oitenta,

quem sabe, não imagino,

mas talvez não mais sinta

a vida como a queimada

do tempo que não mostra

ainda seus dentes escuros,

a cara de marfim do órfão,

então lembro que um amigo

me viu com a cara na parede

e me disse não se preocupe,

você está apenas jovem

há mais tempo do que antes.