21.3.20

“vênus do fim dos tempos"




só acredito no deus dos bêbados,
no deus dos loucos e no deus dos animais.
agora haverá comércio para todos
os nossos panfletos catastróficos.

me arrasto no primeiro andar dessa casa
e já sei que existem os subsolos e o céu
e que ambos estão enganados sobre nós.

todo avanço lustrado com desespero,
nosso falatório sobre o que faríamos
quando fosse a hora e quando ela seria,
era o que sintonizavam nossas orelhas
de pé sem saber que teríamos a honra
de ver o início de um gigantesco fim.

os mendigos pelas ruas se perguntam:
por que estão todos tão desesperados?
os loucos nos asilos recolhem as pedras
pro que chamam de Grande Construção.

os interditados rirão em silêncio da dor
finalmente compartilhada com aqueles
que nunca entenderam e tiveram medo,
mas seguiam no que pensavam: não eu.

só acredito no deus dos bêbados,
no deus dos loucos e nos deus dos animais.
porque ele é gentil e confuso e tímido,
se apresenta e diz: olha não há muito
o que oferecer agora mas estarei contigo.

tudo começa com uma limpeza doentia,
o egoísmo arranca os pelos da nossa paz.
alguns jogam dominó com uma peixeira
escondida em bom lugar e contra o quê?
nunca houve o que não pudessem apontar.

entre algas, alguns mergulharão em si,
estes, sim, à beira da loucura que liberta.
mas a liberdade não será a última etapa
da nossa precária iluminação não aceita.

é hora de beijar a testa dos demônios
que fizeram nos aproximar enquanto
havia tempo e era algo ainda sugerido.

toda hesitação tornou-se o próprio rumo,
o que não pudemos, na pior hora, evitar,
agora é a regra de uma outra alucinação.

só acredito no deus dos bêbados,
no deus dos loucos e no deus dos animais.
os bichos silvestres voltaram às cidades,
os canais de veneza agora têm golfinhos,
é nossa vez e não podemos dar as mãos.

mas este deus no qual acredito
está acostumado com as causas perdidas,
está enterrado também com as vítimas.
tiraram-lhe os braços e tornou-se a vênus,
sacerdotisa única da nossa triste condição.

a desaceleração força visão mais longa,
ansiamos para que não se torne vesga
no meio dessa bolha divisória que agora
precisamos atravessar como nos melhores
romances distópicos que lemos seguros
e rezando por mais tempo em que fosse
possível ficar completamente sozinhos.

que muitos não verão o outro lado da bolha,
isso todos já sabemos desde o princípio
dessa jornada bufa que levamos arregalados.

há que se procurar ainda alguma beleza
na voz entrecortada do que pena ao se calar.
em breve sentiremos saudades, torço aqui
para que não nos tornemos autocentrados
porque este é um exercício com o outro.

já sinto saudades, aliás, dessa coisa única
que nos trouxe até aqui, ainda que muito mal.
é uma coisa que chamo de coisa porque não
fica bonito agora dar nome muito excêntrico
antes que comecemos a perder esse fôlego
de reta final que me estremece por inteiro.
apesar de tudo tem sido uma honra imensa
enfrentar toda essa loucura junto com vocês.






4.3.20

“cigarros”



fumo cigarros não pelo prazer,
por alguma ansiedade ou vício.
fumo porque sinto que preciso
duma forma concreta de morrer.

que não dependa da depressão,
que devagar fixa o sorriso gasto
das estátuas de cera em pessoas
que ademais souberam morrer.

eu mesmo não morro ainda reluto
porque o cigarro é um tique-taque
imparável que não leva em conta
o ânimo ruim de um neurastênico.

em meu completo desamparo,
juro para mim que todo mundo
pensa que sou mais inteligente
ou mais relaxado com essa vida,

quando estou fumando o cigarro
pensando meu deus eu consegui
abandonar a bebida e agora vou
ser a farsa da serenidade adulta.

não digo que eu me desespere,
ainda agradeço por estar vivo,
mas fumo e ouço o tique-taque,
vejo o cinzeiro como um deus.

não – agora eu não posso parar,
pois o mundo dá pinotes à volta
e eu me afasto então do mundo
e não acho nada dentro de mim.

pior que faço tudo isso na ideia
de me poupar de uma dor maior
que seria esperar muito da vida
ou meditar por uma hora ao dia

como faz um presidiário indiano.
no fundo creio que fume cigarros
porque não seja um indiano preso
que bem dizer é um homem antigo.

que seja eu a escrever este poema
é triste e ao mesmo tempo preciso.
agora que leio poemas tão bonitos
preciso fazer um que diga a verdade.

não entendo mais como fazer amor,
não jogo baralho com meus fantasmas.
passo liso com o fake sorriso de cera,
sob os viadutos dessa terrível matinê.

calma se esgota no tremor das mãos,
faço mal as coisas ao mesmo tempo,
na ansiedade de ser um grão de areia
útil enquanto esmurre o tique-taque.

ainda assim não consigo me entregar
àquilo que talvez fosse uma salvação.
hospedar-me faceiro dentro de mim,
peidar de mão cheia aplausos amarelos.

com o cigarro faço uma espécie de elo
desolador mas que é também unânime.
começo a escrever como essa máquina
arregaçada de medo à espera do apito.

fumo para não ser eu mesmo um bicho
e porque o cigarro é uma incompreensão
comprável como coisas que se almejam
diante do muro de um raríssimo silêncio.