O
texto “Notas de um filho desta terra”, do inigualável James Baldwin – que foi
totem de toda uma geração de excluídos, na literatura tanto quanto em suas vidas,
e que existe até hoje, ainda em guetos, sustentando-se com farelos de afeto em
prata comum –, publicado na Revista Serrote #15, na tradução de Donald M.
Garschagen, é de uma literalidade e consciência que, raríssimas vezes, como se
sabe, podemos encontrar juntas num mesmo escritor. É joia pura do início ao
fim, e um passeio pelos nossos temores, nossos amores, nossas lacunas – assim como
as da História.
Deixo
um trechinho, logo após uma insurgência no Harlem...
“Na
verdade, eu não me dera conta de que o Harlem tinha tantas lojas até todas
arrasadas. A primeira vez que a palavra riqueza entrou na minha cabeça aplicada
ao Harlem foi quando a vi dispersa nas ruas. Mas a primeira impressão
incongruente da abundância foi imediatamente neutralizada por uma impressão de
desperdício. Nada daquilo fazia bem algum a quem quer que fosse. Teria sido
melhor terem deixado as vidraças e as portas de vidro como estavam e as
mercadorias dentro das lojas. Teria sido melhor, mas também impossível, pois o
Harlem tivera necessidade de alguma coisa para quebrar. Quebrar coisa é a
necessidade crônica do gueto. Na maior parte do tempo, os habitantes do gueto
quebram uns aos outros ou a si mesmos. Mas, enquanto as paredes do gueto
estiverem de pé, sempre chegará o momento em que essas válvulas de escape não
vão funcionar. Naquele verão, por exemplo, não bastava um sujeito arrumar uma
briga na avenida Lenox ou esculachar os amigos nas barbearias. Se algum dia, de
fato, a violência que enche as igrejas, os salões de sinuca e os bares do
Harlem irromper de uma maneira mais direta, é provável que o Harlem e seus
habitantes desapareçam numa inundação apocalíptica. O fato de não ser provável
que isso aconteça se deve a grande número de razões, na maioria ocultas e
fortes, entre elas a relação real do negro com o branco americano. Essa relação
simplesmente proíbe uma coisa tão descomplicada e satisfatória como o ódio puro
e simples. Para odiar de verdade os brancos, o negro apagar tanta coisa na
mente – e no coração – que esse ódio se torna, ele próprio, uma pose exaustiva
e autodestrutiva. Mas isso não quer dizer, por outro lado, que o amor venha com
facilidade: o mundo branco é demasiado poderoso, complacente e ágil com
humilhações gratuitas e, sobretudo, demasiado ignorante e inocente para isso.
As pessoas são forçadas a fazer ressalvas perpétuas, e suas próprias reações
estão sempre se anulando mutuamente. É isso, na verdade, que tem levado a
todos, brancos e negros, à loucura. As pessoas estão sempre na situação de
decidir entre a amputação e a gangrena. A amputação é rápida, mas o tempo pode
mostrar que ela não era necessária – ou pode-se protelar demais a amputação. A
gangrena é lenta, mas é impossível ter certeza de que se está lendo direito os
sintomas. A ideia de passar o resto da vida aleijado é insuportável, como é da
mesma forma intolerável o risco de inchar lentamente, e com agonia, devido ao
veneno. E o problema, enfim, é que os riscos são reais, mesmo que não haja
opções”.
***
“para james baldwin”
na
maior parte do tempo
os habitantes do gueto
quebram
uns aos outros
ou
quebram a si mesmos.
no
gueto nada foge nunca
os
habitantes do gueto
ou
sofrem de gangrena
ou
da perna que se amputa.
aqui
servimos ao profeta
declama
o pastor negro.
aqui
ressalvas perpétuas
matam
o gueto de medo.
mas
chegará o momento
em
que sumirá o gueto
numa
inundação oculta.
lá
fora restará a loucura.