3.10.14

Escafandro – Coluna de Literatura






Livro: Enquanto agonizo
Autor: William Faulkner
Ano da publicação: 1930
Editora: L&PM (coleção pocket)
Ano da edição: 2014




“Mas não tenho certeza de que um homem tem o direito de dizer o que é loucura e o que não é. É como se em cada homem houvesse outro que estivesse mais além da sanidade e da loucura, que observa as atitudes sãs e insanas desse homem com o mesmo horror e o mesmo assombro”. (Enquanto agonizo, 2014, L&PM, Pg. 199)

Enquanto agonizo (a melhor tradução talvez fosse Enquanto caio mortoAs I lay dying) é uma trilha incongruente em direção à loucura santa. Uma saga poética e uma farsa trágica. Uma trama homérica, com sinos de Shakespeare. Cinquenta e nove monólogos interiores, ou mais, cinquenta e nove cortes bruscos de reflexões interiores entorpecidas pela brutalidade da terra e do ser humano num fluxo contínuo de uma poética sulista americana, a poética do blues e do folk: uma poética da miséria, material, afetiva, mas nunca espiritual.

Eis o trunfo de Faulkner, pois como sulista e gênio da raça ele reconhece que a poesia local está justamente na sua aproximação com o nada, com o fim de tudo. Que, apenas diante da imensa falta de sentido de tudo, é possível sonhar, flutuar sobre os escombros. E, por isso, em cada monólogo de cada integrante da família Bundren, clã de brancos pobres do interior do Mississippi, e no cenário de desolação e carência de todo o desenrolar dessa intricada trama, com tantas vozes se cortando e se cruzando e dando pistas como migalhas no caminho até a casa de uma bruxa má, em cada canto desse corredor de desolação, no percurso apoteótico de uma família de pai mais cinco filhos que leva o corpo da mãe morta (e odiosa) por 60 km numa carroça, para ser enterrada ao lado do pai (a quem, aliás, a odiosa mãe odiava), numa saga desalentada em que nada parece funcionar como deveria e tudo parece desencaixado e como que com os parafusos frouxos, com entremeios de sinestesia pura onde sons se coagulam, a madeira sangra, a terra é quente e cega; em todo esse percurso que na verdade é o percurso que a brutalidade executa até chegar à demência e, portanto, aos sonhos alucinógenos que permeiam o texto todo, em tudo existe algo como um pulsar firme e cadenciado com mestria como o som de um Robert Johnson ou um Skip James – e, somados a tudo isso, as intrigas silenciosas entre os familiares, os segredos pecaminosos que representam a hipocrisia católica, mais o calor insuportável e o suor e o fedor do cadáver que vai apodrecendo lentamente diante dos abutres que rondam, contados a cada momento pelo caçula da família, um menino que pensa que sua mãe é um peixe.

As I Lay Dying é a história de uma família arruinada e a história da família como ruína humana. Segundo o crítico inglês Harold Bloom, a visão de Faulkner está fundamentada em seu horror à família e à comunidade. É, talvez, como disse certa vez o escritor francês André Gide: os personagens de William Faulkner carecem de alma. E nisso está seu grande privilégio estilístico. Publicado em 1930, bem no início da chamada “década faulkneriana” (1929-1939), os 59 monólogos que compõem esta que é considerada uma das prosas mais brilhantes do século XX são um acerto de contas definitivo com a brutalidade de uma existência miserável, num lugar estéril, em meio a crises morais constantes movidas por um repressor senso religioso. Disso, Faulkner criou ricas prosas poéticas permeadas por ágeis diálogos quase todos sem emoção e por isso capazes de produzir no leitor algumas emoções intestinais. Porque, ali, Faulkner está falando sobre a farsa de toda família e sua hipocrisia e falsos conceitos. E a beleza de tudo isso.

Não à toa, o título da obra é uma citação direta de um trecho da Odisseia de Homero. Sopram nessa obra de um Faulkner no auge de seus 33 anos, não à toa, talvez, a idade de um Cristo crucificado, ares gregos regados por equívocos e desvios que pesam na balança existencial de cada personagem, atribuindo a cada um deles sua densidade. O elenco: uma família, pai e mãe, cinco filhos, num vilarejo do Mississippi. O pai (Anse) sem os dentes da boca, impedido de absorver os alimentos que “Deus dá ao Homem”, encurvado e passivo, sempre clamando ao senhor quando comete alguma de suas muitas falhas como homem e como pai; a mãe moribunda, agônica em seu leito de morte enquanto seu filho mais velho (Cash) faz do serrote que constrói seu caixão a marcha fúnebre do prólogo; outros quatro filhos: um (Darl) que é o espírito poético, o clown e o provável alterego de Faulkner, linha condutora e portador do milagre da trama, presença superior e carga moral do enredo; uma menina (Dewey Dell) que parece esconder alguma coisa terrível, mas menos de Darl, e depois descobrimos o quão terrível pode ser uma coisa que se tenta, em vão, esconder; o caçula (Vardaman), que é o ponto de ruptura e escape da pesada travessia para um ambiente de fantasia e alguma elevação de que só as crianças e os loucos são capazes; e, por último, o antagonista, inimigo de Darl e seu rival primordial, a outra face da moeda Darl, fruto de um relacionamento escuso da mãe morta com o reverendo local, filho preferido, joia da família (seu nome é Jewel).

Harold Bloom considera As I Lay Dying o romance mais surpreendente de William Faulkner. Uma farsa trágica, mas com imensa dignidade estética. O niilismo – embebido da consciência shakespeariana do nada – do próprio escritor em sua fase áurea. Mas, antes de tudo, As I Lay Dying é um acerto de contas do Faulkner do recém-publicado e reverenciado O Som e a Fúria (1929) com o Faulkner jovem e perdido que publicou um livro malogrado de poemas por conta própria (The Marble Faun, ou, traduzindo, O Fauno de Mármore). Não à toa a citação de Homero. (...enquanto agonizo / aparta-se a imprudente...). Não à toa os caudalosos estribilhos, os melancólicos refrães que perfuram lentamente nossa pele e ossos como se fossem os mosquitos do Rio Mississippi.

Acima de qualquer outra coisa, As I Lay Dying é uma epopeia homérica da pobreza, tendo em Darl seu mestre de cerimônia e, provavelmente, o que Faulkner, em seu íntimo gostaria de ser. Alguém que sabe mais, que sabe o que os outros não sabem, por isso não é aceito pelos outros, mas tem poder sobre todos os que não o aceitam. Darl é o enigma constante da novela, que desaba sobre a própria loucura à que leva seu gênio, num desfecho tão impactante (mas bem mais econômico) quanto a emblemática enchente do mais famoso e prestigiado Palmeiras Selvagens (1939), que leva os presos a voltarem para o presídio em desespero. Mas ali está Faulkner, absorvido em todas as suas inclinações, traumas e recalques. Também um homem ressentido, em certa medida, por ter querido combater na Primeira Guerra Mundial, chegando a se passar por britânico para entrar na Força Aérea Canadense em 1918, e não ter feito nenhum combate.

Esta novela curta de William Faulkner acaba sendo um diamante bruto dentro de uma obra gigantesca, um achado que felizmente foi republicado este ano pela impávida editora gaúcha L&PM, dona, talvez, do melhor catálogo de literatura de bolso no ramo. A seca e pesarosa ladainha sulista, as famílias desarranjadas e que, apesar da mecânica devoção católica, escondem terríveis segredos uns dos outros. O centro de equilíbrio da criação de Faulkner em seu arranque. E se, segundo André Gide, os personagens de Faulkner carecem de alma, como pistões rudes eles flutuam num mundo oleoso onde todos são Sísifos, e nessa pedra porosa e úmida o autor esculpe as reentrâncias dos mais íngremes sentidos, em seus capítulos curtos como socos de briga de rua, em sua múltipla visão adoecida e súplice. A poesia fúnebre, a marcha destruidora da ingênua esperança, do mais antigo blues. 

Um comentário:

Isadora P. disse...

Belíssima resenha, meu amor!