Livro: Enquanto agonizo
Autor: William Faulkner
Ano da publicação: 1930
Editora: L&PM (coleção
pocket)
Ano da edição: 2014
“Mas não
tenho certeza de que um homem tem o direito de dizer o que é loucura e o que
não é. É como se em cada homem houvesse outro que estivesse mais além da
sanidade e da loucura, que observa as atitudes sãs e insanas desse homem com o
mesmo horror e o mesmo assombro”. (Enquanto agonizo, 2014, L&PM, Pg. 199)
Enquanto agonizo (a melhor tradução talvez
fosse Enquanto caio morto – As I lay
dying) é uma trilha incongruente em direção à loucura santa. Uma saga poética
e uma farsa trágica. Uma trama homérica, com sinos de Shakespeare. Cinquenta e
nove monólogos interiores, ou mais, cinquenta e nove cortes bruscos de
reflexões interiores entorpecidas pela brutalidade da terra e do ser humano num
fluxo contínuo de uma poética sulista americana, a poética do blues e do folk:
uma poética da miséria, material, afetiva, mas nunca espiritual.
Eis o trunfo
de Faulkner, pois como sulista e gênio da raça ele reconhece que a poesia local
está justamente na sua aproximação com o nada, com o fim de tudo. Que, apenas
diante da imensa falta de sentido de tudo, é possível sonhar, flutuar sobre os
escombros. E, por isso, em cada monólogo de cada integrante da família Bundren,
clã de brancos pobres do interior do Mississippi, e no cenário de desolação e
carência de todo o desenrolar dessa intricada trama, com tantas vozes se
cortando e se cruzando e dando pistas como migalhas no caminho até a casa de uma
bruxa má, em cada canto desse corredor de desolação, no percurso apoteótico de
uma família de pai mais cinco filhos que leva o corpo da mãe morta (e odiosa)
por 60 km numa carroça, para ser enterrada ao lado do pai (a quem, aliás, a
odiosa mãe odiava), numa saga desalentada em que nada parece funcionar como
deveria e tudo parece desencaixado e como que com os parafusos frouxos, com
entremeios de sinestesia pura onde sons se coagulam, a madeira sangra, a terra
é quente e cega; em todo esse percurso que na verdade é o percurso que a
brutalidade executa até chegar à demência e, portanto, aos sonhos alucinógenos
que permeiam o texto todo, em tudo existe algo como um pulsar firme e
cadenciado com mestria como o som de um Robert Johnson ou um Skip James – e, somados
a tudo isso, as intrigas silenciosas entre os familiares, os segredos
pecaminosos que representam a hipocrisia católica, mais o calor insuportável e
o suor e o fedor do cadáver que vai apodrecendo lentamente diante dos abutres que
rondam, contados a cada momento pelo caçula da família, um menino que pensa que
sua mãe é um peixe.
As I Lay Dying é a história de uma
família arruinada e a história da família como ruína humana. Segundo o crítico
inglês Harold Bloom, a visão de Faulkner está fundamentada em seu horror à
família e à comunidade. É, talvez, como disse certa vez o escritor francês André
Gide: os personagens de William Faulkner carecem de alma. E nisso está seu
grande privilégio estilístico. Publicado em 1930, bem no início da chamada “década
faulkneriana” (1929-1939), os 59 monólogos que compõem esta que é considerada
uma das prosas mais brilhantes do século XX são um acerto de contas definitivo
com a brutalidade de uma existência miserável, num lugar estéril, em meio a
crises morais constantes movidas por um repressor senso religioso. Disso,
Faulkner criou ricas prosas poéticas permeadas por ágeis diálogos quase todos
sem emoção e por isso capazes de produzir no leitor algumas emoções
intestinais. Porque, ali, Faulkner está falando sobre a farsa de toda família e
sua hipocrisia e falsos conceitos. E a beleza de tudo isso.
Não à toa, o
título da obra é uma citação direta de um trecho da Odisseia de Homero. Sopram
nessa obra de um Faulkner no auge de seus 33 anos, não à toa, talvez, a idade
de um Cristo crucificado, ares gregos regados por equívocos e desvios que pesam
na balança existencial de cada personagem, atribuindo a cada um deles sua
densidade. O elenco: uma família, pai e mãe, cinco filhos, num vilarejo do Mississippi.
O pai (Anse) sem os dentes da boca, impedido de absorver os alimentos que “Deus
dá ao Homem”, encurvado e passivo, sempre clamando ao senhor quando comete
alguma de suas muitas falhas como homem e como pai; a mãe moribunda, agônica em
seu leito de morte enquanto seu filho mais velho (Cash) faz do serrote que
constrói seu caixão a marcha fúnebre do prólogo; outros quatro filhos: um (Darl)
que é o espírito poético, o clown e o
provável alterego de Faulkner, linha condutora e portador do milagre da trama,
presença superior e carga moral do enredo; uma menina (Dewey Dell) que parece
esconder alguma coisa terrível, mas menos de Darl, e depois descobrimos o quão
terrível pode ser uma coisa que se tenta, em vão, esconder; o caçula
(Vardaman), que é o ponto de ruptura e escape da pesada travessia para um
ambiente de fantasia e alguma elevação de que só as crianças e os loucos são
capazes; e, por último, o antagonista, inimigo de Darl e seu rival primordial, a
outra face da moeda Darl, fruto de um
relacionamento escuso da mãe morta com o reverendo local, filho preferido, joia
da família (seu nome é Jewel).
Harold Bloom considera As I Lay Dying o romance mais
surpreendente de William Faulkner. Uma farsa trágica, mas com imensa dignidade
estética. O niilismo – embebido da consciência shakespeariana do nada – do
próprio escritor em sua fase áurea. Mas, antes de tudo, As I Lay Dying é um acerto de contas do Faulkner do recém-publicado
e reverenciado O Som e a Fúria (1929)
com o Faulkner jovem e perdido que publicou um livro malogrado de poemas por
conta própria (The Marble Faun, ou,
traduzindo, O Fauno de Mármore). Não à toa a citação de Homero. (...enquanto agonizo / aparta-se a imprudente...).
Não à toa os caudalosos estribilhos, os melancólicos refrães que perfuram
lentamente nossa pele e ossos como se fossem os mosquitos do Rio Mississippi.
Acima de qualquer outra coisa, As I Lay Dying é uma epopeia homérica da
pobreza, tendo em Darl seu mestre de cerimônia e, provavelmente, o que
Faulkner, em seu íntimo gostaria de ser. Alguém que sabe mais, que sabe o que
os outros não sabem, por isso não é aceito pelos outros, mas tem poder sobre
todos os que não o aceitam. Darl é o enigma constante da novela, que desaba
sobre a própria loucura à que leva seu gênio, num desfecho tão impactante (mas
bem mais econômico) quanto a emblemática enchente do mais famoso e prestigiado Palmeiras Selvagens (1939), que leva os
presos a voltarem para o presídio em desespero. Mas ali está Faulkner,
absorvido em todas as suas inclinações, traumas e recalques. Também um homem
ressentido, em certa medida, por ter querido combater na Primeira Guerra
Mundial, chegando a se passar por britânico para entrar na Força Aérea
Canadense em 1918, e não ter feito nenhum combate.
Esta novela curta de William Faulkner
acaba sendo um diamante bruto dentro de uma obra gigantesca, um achado que
felizmente foi republicado este ano pela impávida editora gaúcha L&PM,
dona, talvez, do melhor catálogo de literatura de bolso no ramo. A seca e
pesarosa ladainha sulista, as famílias desarranjadas e que, apesar da mecânica
devoção católica, escondem terríveis segredos uns dos outros. O centro de
equilíbrio da criação de Faulkner em seu arranque. E se, segundo André Gide, os
personagens de Faulkner carecem de alma, como pistões rudes eles flutuam num
mundo oleoso onde todos são Sísifos, e nessa pedra porosa e úmida o autor
esculpe as reentrâncias dos mais íngremes sentidos, em seus capítulos curtos
como socos de briga de rua, em sua múltipla visão adoecida e súplice. A poesia
fúnebre, a marcha destruidora da ingênua esperança, do mais antigo blues.
Um comentário:
Belíssima resenha, meu amor!
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