mais uma vez aciona-se o velho
realejo.
algo migra lentamente, algo muda
sem pressa,
mas não tão lentamente, não tão
sem pressa.
quando algo muda, quando algo
migra,
é quando se corre o maior risco
de desaparecimento.
ainda assim, há o que nunca
desaparece,
mas também não aparece demais;
permanece como galinha
decapitada,
correndo em torno do milagre.
ouço a música leprosa do velho
realejo.
seus permanentes e sempre mesmos
encaixes frouxos,
suas colagens quebradiças e seu
completo e tão íntimo desafinar.
outros dias eram os mesmos
acordes,
apenas a dança não permaneceu
igual.
por onde não correste por medo
de que teus pés vencessem aquém
de ti,
o que não tocaste sem ter
resolvido
ainda o que não tocar,
todos os beijos trêmulos e os
desmaios
nas esquinas do esquecimento.
tudo isso está sempre em jogo
aqui.
soltas-te uma vez mais e sabes que
cairás já sem ossos,
e inauguras teu visco doce de
derrota premeditada,
e encerras-te noutra voltagem,
tornas-te poça de amor.
nada sabes da corrente que te
arrasta.
nada dizes, falas muito, dos
benefícios deste novo meandro.
destruir consigo, arrastar em
morte,
dobrar-se em cápsula, cultuar
cicatrizes,
empalhar tristezas e embalar
fantasmas,
foi só isso o que te foste antes
ensinado.
mesmo assim te atiras na
torrente e sabes
que mais alguns pedaços cobrarão
o crime póstumo.
as partes de outras partes
correrão atrás de ti pelas ruas.
e nada farás de importante, e
ouvirás a música da passagem.
no que nada farás serás tu, e
tudo mais se perde,
o realejo podre afirma a mais velha
contradição.
atirar-se na corrente, migrar no
risco da repetição,
ser um por não ser nada; lento,
não sem pressa.
Um comentário:
Surpreendente e aflitivo. Arrasante. Bjs. Mary
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