7.8.14

"ouço a música"


mais uma vez aciona-se o velho realejo.
algo migra lentamente, algo muda sem pressa,
mas não tão lentamente, não tão sem pressa.

quando algo muda, quando algo migra,
é quando se corre o maior risco de desaparecimento.
ainda assim, há o que nunca desaparece,
mas também não aparece demais;
permanece como galinha decapitada,
correndo em torno do milagre.

ouço a música leprosa do velho realejo.
seus permanentes e sempre mesmos encaixes frouxos,
suas colagens quebradiças e seu completo e tão íntimo desafinar.

outros dias eram os mesmos acordes,
apenas a dança não permaneceu igual.
por onde não correste por medo
de que teus pés vencessem aquém de ti,
o que não tocaste sem ter resolvido
ainda o que não tocar,
todos os beijos trêmulos e os desmaios
nas esquinas do esquecimento.
tudo isso está sempre em jogo aqui.

soltas-te uma vez mais e sabes que cairás já sem ossos,
e inauguras teu visco doce de derrota premeditada,
e encerras-te noutra voltagem, tornas-te poça de amor.

nada sabes da corrente que te arrasta.
nada dizes, falas muito, dos benefícios deste novo meandro.
destruir consigo, arrastar em morte,
dobrar-se em cápsula, cultuar cicatrizes,
empalhar tristezas e embalar fantasmas,
foi só isso o que te foste antes ensinado.

mesmo assim te atiras na torrente e sabes
que mais alguns pedaços cobrarão o crime póstumo.
as partes de outras partes correrão atrás de ti pelas ruas.
e nada farás de importante, e ouvirás a música da passagem.

no que nada farás serás tu, e tudo mais se perde,
o realejo podre afirma a mais velha contradição.
atirar-se na corrente, migrar no risco da repetição,
ser um por não ser nada; lento, não sem pressa.


Um comentário:

Anônimo disse...

Surpreendente e aflitivo. Arrasante. Bjs. Mary