pelas manhãs sinto no
estômago a falta de meus dias.
à noite uma
caranguejeira me arrasta para o que esqueci.
na madrugada sonho que
o ventilador é um caminhão de lixo.
o caminhão de lixo
passou e não me livrei daquelas caixas.
uma senhora passa
fumando pela janela do edifício térreo.
em sua camisa há
dizeres em sânscrito ou coisa que o valha.
a senhora não combina
com os dizeres, mas eu não saberia dizer.
passa também um
açougueiro com seu cheiro peculiar de história.
um eletricista sem uma
perna que dorme num confortável colchão.
dorme num confortável
colchão às portas da minha proteção inútil.
dorme como criança e
imagino que o mesmo aconteça ao resto.
à velha dos dizeres em
sânscrito e ao açougueiro da história.
a precisão destes
versos tem a força de um delírio cômodo.
é preciso contorná-los
de alguma forma para chegar ao final.
as lâminas não têm fio
e o gás tem uma válvula de controle.
não há mais poetas pela
região a não ser os que se presenteiam.
são dores de muco e
pantufas prateadas de um natal em chamas.
agora estou de saída,
pois arranjei um cabo de vassoura e um pai.
o cabo de vassoura para
a válvula de gás e o pai até o asilo de loucos.
o lugar é bonito,
cheira mal, lotado de pessoas com prisão de ventre.
Anastácio Cantor de
Impropérios, Buda Hesse, David Homem-Leão.
os comprimidos noturnos
são como as bolas dos pinheiros natalinos.
minha tuia holandesa
morrerá agora sem a água dos meus tamancos.
papai-noel tem jaleco
branco, orelhas mordidas e rosna docemente.
divido meu quarto com
um senhor tatuado viciado em clorofórmio.
suas tatuagens são
bonitas e fico pensando por onde teria viajado.
têm estilo oriental e
ele está muito acima do peso e tem olhos claros.
Bangkok, Tanzânia, Absínia,
Bangladesh, ele dorme e não come.
relata que não come há
três dias e pergunta se eu também sou um DQ.
antes que eu responda
ele dorme outra vez e eu também estou na cama.
somos todos pessoas que
não souberam de alguma forma envelhecer.
pessoas que cantam
sozinhas canções erradas de amor, novas e velhas.
estou na cama com meu livro
aberto onde sublinho selfishness of quiet.
tenho no pulso uma
tatuagem que o gordo ao meu lado não tem igual.
ela poderia ter sido
feita em Bangkok, Tunísia, Absínia, deve haver por lá.
foi por causa dela e
não de clorofórmio que vim para neste lugar bonito.
prefiro deste modo
mesmo que haja tantas outras maneiras de acontecer.
as tardes eu passo dormindo
sob centopeias verdes das horas em musgo.
uma mulher de cabelos
roxos me trouxe escova de dentes e creme dental.
nada saiu ainda de mim
que se misture ao cheiro ruim deste lugar bonito.
há uma área externa
onde fazer exercícios, mas que usamos para fumar.
fuma-se muito mais
quando se está louco e usam-se meias com chinelos.
aqui sou como os outros
e as palavras valem menos, mas há os insetos.
eles me percorrem as
feridas e escrevem à minha volta o preço da poesia.
ao fundo escutam-se
marteladas de uma nova construção para a loucura.
acima os helicópteros
da vida má e, ao redor, velhas canções de amor.
a química me pesa no
ventre como um feto, uma saudade da juventude.
mas neste lugar
bonito descobri que a juventude é uma invenção de velhos.
2 comentários:
Em lágrimas, doeu fundo. Mary
Vou lá te prestigiar.
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