10.12.13

"óleo das horas dormidas"


pelas manhãs sinto no estômago a falta de meus dias.
à noite uma caranguejeira me arrasta para o que esqueci.
na madrugada sonho que o ventilador é um caminhão de lixo.
o caminhão de lixo passou e não me livrei daquelas caixas.
uma senhora passa fumando pela janela do edifício térreo.
em sua camisa há dizeres em sânscrito ou coisa que o valha.
a senhora não combina com os dizeres, mas eu não saberia dizer.
passa também um açougueiro com seu cheiro peculiar de história.
um eletricista sem uma perna que dorme num confortável colchão.
dorme num confortável colchão às portas da minha proteção inútil.
dorme como criança e imagino que o mesmo aconteça ao resto.
à velha dos dizeres em sânscrito e ao açougueiro da história.
a precisão destes versos tem a força de um delírio cômodo.
é preciso contorná-los de alguma forma para chegar ao final.
as lâminas não têm fio e o gás tem uma válvula de controle.
não há mais poetas pela região a não ser os que se presenteiam.
são dores de muco e pantufas prateadas de um natal em chamas.
agora estou de saída, pois arranjei um cabo de vassoura e um pai.
o cabo de vassoura para a válvula de gás e o pai até o asilo de loucos.
o lugar é bonito, cheira mal, lotado de pessoas com prisão de ventre.
Anastácio Cantor de Impropérios, Buda Hesse, David Homem-Leão.
os comprimidos noturnos são como as bolas dos pinheiros natalinos.
minha tuia holandesa morrerá agora sem a água dos meus tamancos.
papai-noel tem jaleco branco, orelhas mordidas e rosna docemente.
divido meu quarto com um senhor tatuado viciado em clorofórmio.
suas tatuagens são bonitas e fico pensando por onde teria viajado.
têm estilo oriental e ele está muito acima do peso e tem olhos claros.
Bangkok, Tanzânia, Absínia, Bangladesh, ele dorme e não come.
relata que não come há três dias e pergunta se eu também sou um DQ.
antes que eu responda ele dorme outra vez e eu também estou na cama.
somos todos pessoas que não souberam de alguma forma envelhecer.
pessoas que cantam sozinhas canções erradas de amor, novas e velhas.
estou na cama com meu livro aberto onde sublinho selfishness of quiet.
tenho no pulso uma tatuagem que o gordo ao meu lado não tem igual.
ela poderia ter sido feita em Bangkok, Tunísia, Absínia, deve haver por lá.
foi por causa dela e não de clorofórmio que vim para neste lugar bonito.
prefiro deste modo mesmo que haja tantas outras maneiras de acontecer.
as tardes eu passo dormindo sob centopeias verdes das horas em musgo.
uma mulher de cabelos roxos me trouxe escova de dentes e creme dental.
nada saiu ainda de mim que se misture ao cheiro ruim deste lugar bonito.
há uma área externa onde fazer exercícios, mas que usamos para fumar.
fuma-se muito mais quando se está louco e usam-se meias com chinelos.
aqui sou como os outros e as palavras valem menos, mas há os insetos.
eles me percorrem as feridas e escrevem à minha volta o preço da poesia.
ao fundo escutam-se marteladas de uma nova construção para a loucura.
acima os helicópteros da vida má e, ao redor, velhas canções de amor.
a química me pesa no ventre como um feto, uma saudade da juventude.
mas neste lugar bonito descobri que a juventude é uma invenção de velhos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Em lágrimas, doeu fundo. Mary

Anônimo disse...

Vou lá te prestigiar.