29.5.13

“tudo é concha”

Quem acha sem procurar é quem
longamente buscou sem encontrar
(Gaston Bachelard)


viramos a curva agora e não há lenço
na despedida do que se arrasta conosco,
mas são pedaços tristes de um Vietnã
retido em cada célula mas então adeus,
madrugadas com o coração em chamas
nos postos de gasolina de meus anos,
adeus sem pressa, mas por fim adeus,
cúpula tensa de cataclismos telúricos,
chave de braço do perdão e olho roxo,
ronco suave da droga no embalo mítico,
tudo é concha na mandíbula do soalho,
susto cardíaco do amor, suor das veias,
reclame em perdigotos ao céu da fuga,
tempo sem tempo em que o tempo vive,
agora afogado na ampulheta do manejo,
rastro sem bicho do que caíram órgãos,
rumor de cimento nos poros da beleza,
azuis as fadas azul a tristeza azul o nada,
agora apenas amarelas as folhas mortas,
velho para a música e novo para calçar
os sapatos que nos cospem és um adulto,
portanto adeus ao que nem lembro e sou,
essa matéria que engole e cospe e somos
o que nos resta dela em cílios trêmulos e
bocas tortas para baixo num cerne rude,
agora já viramos a curva e não há lenço
nos narizes de antigas e dolorosas ninfas,
é passar ao largo e engolir o verde musgo
da vida ainda líquida da primeira latência,
agora que lembrar é o crime da memória
e despedir-se é lançar através da vidraça
os corpos perdidos que um dia pensamos:
têm frio mas, apesar de tudo, veem a luz,
verde entranha tracejada de escuro cínico.  

23.5.13

“porto alegre, preciso ir”


embrulha-me, outra vez,
no teu estômago cativo
e vomita-me no ordinário
de teus pés enregelados.

não desfraldei a tua bandeira
em nenhum navio de escravos.

não sei a carne da tua língua,
mastigo o vácuo do abandono
que, hoje, sozinho, retorno a ti.

teu frio já não me parte as veias.
me deste uma escola de pelúcia
a que retribuo com lição de pedra.

14.5.13

"peixe julia"


julia bicalho mendes, você é meu peixe boi,
você é meu peixe espada, você deve furar a bolha
e engolir, pois não há problema engolir um pouco,
o esgoto do mundo que é o que dá velocidade
e presença às nossas dores e alegrias terrenas,
o que faz as pessoas crerem que nos divertimos
ou que nos fechamos, como disse o seu pai,
porque o mundo é muito grande, mas não é tudo,
estamos suspensos por uma vontade de flutuar
um pouco sobre as lâminas de nossos pulmões,
portanto fure a bolha, meu peixe macio, meu girino
de coração ventoso, espie belo buraco da fechadura
e então sente o pé na porta, afine as serpentes do cu,
jogue-se porque jogar-se é para nós, que carregamos
o coração em cadeiras de rodas rumo a China Town.
não se esqueça, meu peixe martelo, de que os ventos
sempre sopram ao largo quando a casa é de passagem.

8.5.13

"ela chora"


tenho sido pessimista, enquanto, ao meu lado
alguém se veste sem pressa e chora pesado.
e penso que alguém que chora é bom partido
para quem é impossível encontrar um caminho.

ao meu lado alguém chora sem pressa, durmo,
já não tenho lágrimas para entender o absurdo
de quem chora por coisas em que falta o verbo.
afasto, calo, fujo, grito, inauguro-me de inverno,

com verbo demais me descontento, daí declino,
e como é linda, no fundo, essa raiva de menino
que acolhe com olhos inchados o que assusta,

porque chora do que não sabe dizer, e a busca
por achar vida no sem verbo e no verbo demais
é a manta sobre o inverno, dos trapos da paz.