1. primeiras conclusões
tudo bem, hoje não será tão bravio nem com tanta veemência,
hoje direi que tenho medo e meu lirismo nada mais é que puro pavor
de reconhecer-me inábil até os ossos, de não me reconhecer de fato
alguém constituído de um centro nerval onde quer que esteja e devo
admitir com simplicidade que talvez eu reconheça em pânico
que não sei se algum dia chegarei a alcançar esse tal centro nerval
onde supostamente eu deveria estar em corpo e alma e todo ar
sendo apenas eu mesmo como um eu especial e um eu comum,
já que todas as pessoas com quem eu falo, por mais problemas
que tenham elas possuem isso que talvez seja uma identidade
e eu talvez não aceite ter uma identidade porque tenha medo
de envelhecer dentro dessa identidade, talvez por isso, agora,
aos prantos deverei confessar acima de tudo a mim mesmo:
sou incompleto, sem pedaço, e não carente do que não conheço
e que poderia me inspirar a vida ainda que em forma de ilusão,
e penso que talvez esse medo venha mesmo do fato
de que eu não saberia viver sem ilusão, mas sei bem
que a minha ilusão é só minha, fui eu que a inventei,
seja com vinho demais, confusões amorosas demais, problemas
emocionais cujas origens eu sei que elas existem e de onde vêm,
mas não me lembro como é o lugar de onde vêm, e a saúde
está por um fio com essa tosse de duas semanas, e com esses cigarros
intermináveis num clima quente e frio e muito eficaz todo o tempo
em me manter desconfortável e tísico porque uma das coisas
que apesar do medo, esse medo sem chão que vai me dando
de pensar que um dia, se vier a saber quem sou, de que matéria estranha
e tão pouco especial pode ser feito um homem assim, se existe
algum parâmetro assim para alguém que senta e espera a morte
se arriscando ao máximo e daí vem o medo, esse medo pavoroso
de que algo exploda de uma vez na cadeia desse pânico que, no fim,
é minha única unidade emotiva, minha catástrofe de que sei a chegada
surda, elegante e sem estrondo que sinto se aproximar e que espero
com ansiedade de criança, mas que, conforme sinto as patas dos anos
em minhas costas já condenadas por trabalhos estúpidos onde, ao menos,
encontro pessoas estúpidas como eu e muitas também com medo,
conforme sinto o peso das patas, o medo recua um pouco, respiro ainda,
e no fim das contas penso: descobre-se com murros e mais nada
que as pessoas estúpidas também podem ter entre si um laço
absolutamente particular de misturar medo e amor e penso:
além das minhas costas, dos meus pés feridos, do meu peito infantil,
preciso também dessas pessoas estúpidas como eu, e isso eu sei,
ou nem isso, meu medo é isso, essa doença de entrega punitiva,
protegida pela medieval couraça de um litoral bandido e prognata,
uma terra de ninguém, e que destrói e canta aos defuntos pouco heroicos
e aos punhos em carne viva de nosso herói encurralado, esquecido, maior,
e agora seria melhor ter cortinas vermelhas que, como numa peça russa,
nos levasse de volta à casa calados e pensativos, porque no fundo
sabemos que todos temos medo, que poucos dão as mãos e muitos dão
com enojada discrição, mas agora não é possível generalizar e dizer “nós!”,
hoje não será homérico nem tão pouco lírico, o ideal seria que fosse
possível apenas imaginar um homem em certo estado de desespero,
mas um homem ainda vivo, percebe-se facilmente pelas constantes
escoriações púrpuras nas paredes do tédio urbano, de joelhos, sim,
desde cedo confundindo coragem e pavor cego, ainda assim unido
a si mesmo pelo escoar do último fôlego e a caixa torácica arreganhada,
e no fundo também, acima de tudo, se perguntando: há mais alguém?
2. diário de um delírio
Henry Miller à tarde, braço dormente, sopa de feijão, água quente com sal, medo da sífilis, da gravidez improvisada, do amor, cigarros escondidos na varanda, crianças arruaceiras, colegiais com saias curtas de uniforme, buracos nas almas dos amantes, olhos fixos voltados para trás, elegias para as muitas mortes, uma lágrima para cada flor no escuro, pentear, tal Pacino, os cabelos para trás, forjar um charuto, um chapéu, uma bela capa, um pintor, vestir-se como um pintor, casaco de lã crespa, botões desleixados, apaixonar-se por si, cabelos, pensar nos cabelos, massagear o que sobrou dos cabelos, amá-los em sua ausência, chorar um pouco, pensar no pai, nos antepassados da mãe, porres de avô com Lupicínio, um bife à cavala, olhar as luzes pobres, olhar os passantes, charmoso e cavalheiresco ar tísico, maravilhas de Hans Castorp, muito bem, o último cigarro avulso na banca, uma despedida formal, aqui abdico de ti, ó desregrada vida própria, queiram entrar ambroxol, levofloxacino, bamifix, sulfato de salbutamol, budesonida amada, que bom vê-la, por favor, tenham a gentileza de levar este senhor, arruinou-se, façam o favor, Anna Magnani, Mickey Rourke, Bill Murray, flores do mal de meus pulmões, incêndios nos meus sonhos suados, mosquitos em minhas sensações, adornar-se para a grande ida, devorar-se em milênios de elucubrações, um pouco mais de Miller, tentar melhor o abraço do intestino, esperar a febre, Clint Eastwood, compaixão fraternal pelo time de futebol do Botafogo, entender talvez com frágil doçura as frases feitas de nossas origens, por um momento de alucinação, vide bula, recordar a antiga namorada e escrever um poema de amor, escorrem verdes meus peixes lutadores, à noite rezar a deus e levantar minutos adiantado para a coleta de urina.
3. a última hospedeira
peço-te que, se vieres, chegues alegre e de mansinho,
chegues talvez fora de hora, longe do combinado,
isso não me preocupa, mas chegues sorridente,
ao menos uma vez, depois de tantas vezes em que chegaste arrasadora,
de cara fechada, empurrando e ofendendo sem motivo,
chegues hoje pequenina, chegues com chapéu na mão,
faças uma reverência, senão por merecimento dispensado,
ao menos por antiguidade, por seres a minha mais antiga presença,
passes um batom intenso, não me importa, descabeles um pouco,
se for totalmente necessário, as madeixas do teu veneno único,
apenas não te esqueças de cantarolar alguma coisa em francês,
ou então qualquer música leve assobiada com ardor.
que chegues elegante ainda que jovem, minha preciosa,
petulante amiga, chegues sem rima ou qualquer enganação profana,
não precisamos de etiquetas agora, nunca mais precisaremos,
sejamos apenas um bom casal que se separou por muito tempo
e agora planeja voltar a morar junto, em quartos separados.
posso te esperar até mesmo sentando, vestindo terno,
de pernas cruzadas esperarei com charutos para nós dois,
arrastarei para que sentes a cadeira do meu corpo tombado,
e tu te sentarás sem muitas palavras, mas sempre sorridente
e sutil e feroz como Anna Magnani tu embalarás meu sono,
e eu serei teu novo escudo, eu serei tua bellissima creatura.