eu creio com firmeza que a vida
é promovida pelos preocupados.
os preocupados são os analistas
da vida, ou seja, a vida só existe
pela preocupação de que se forma.
mas ocorre que jamais um vive
preocupado em promover a vida.
e os que bradam “eu vivo a vida!”
são promovidos à ação, contudo,
eles não podem ser os mandantes,
eles estão renegados ao progresso.
no meio-tempo, os preocupados
sem jamais viverem eles exercem
a dádiva do câncer, o riso divino.
a força do amor é do abandono,
os preocupados amam e deixam
para os sorridentes escravizados
a alegria doce de não ver e agir.
26.9.11
"rebordosa"
é preciso saber esperar,
meia hora e nada mais,
um banho e quem sabe
uma saudável inclinação.
sincero consigo mesmo,
este deve ser o mantra,
penar diante de si mesmo,
o nariz assado, a mente
inquieta, abstrata, torpe.
as leituras russas jamais
ajudam tipos como este.
hás de meter calo a grito,
doente que não se diria,
faminto de muita sorte.
afagas teu crime diário,
desces aqui um pouco
abaixo da linha sisuda.
bailemos, pois, orfanato!
sejamos as presas aflitas.
lá onde não há disfarce
só pode ter restado vida.
meia hora e nada mais,
um banho e quem sabe
uma saudável inclinação.
sincero consigo mesmo,
este deve ser o mantra,
penar diante de si mesmo,
o nariz assado, a mente
inquieta, abstrata, torpe.
as leituras russas jamais
ajudam tipos como este.
hás de meter calo a grito,
doente que não se diria,
faminto de muita sorte.
afagas teu crime diário,
desces aqui um pouco
abaixo da linha sisuda.
bailemos, pois, orfanato!
sejamos as presas aflitas.
lá onde não há disfarce
só pode ter restado vida.
23.9.11
“sem verbo, sem adjetivo”
para Miles Davis
ainda não de todo corpo a verdade,
sem verbo ainda a pele do processo,
acima de tudo, um deslize adjetivo,
dentes e areia nos olhos da penumbra,
miles de minha infância, aleluia, sim!
escultura de metal com molas, prego
no caminho em música, cavalgadas
de paz como feitiço, chapéu da noite
dentro dos ossos, escola da exigência,
frequência de rua, tempo de gueto,
pulso da abstração, catarata on/off,
agulhas de mel no topo do sentido,
um dia, talvez, elegância da margem,
dança com dois punhos de algodão,
órgãos em drama de semi-esperança,
assim já não, nunca mais, agora outro
deserto memória da agonia em pêlos,
sem um verbo, desta vez sem adjetivo,
prazer de íris, maná, dilatação do susto,
culhão de maremoto, show das raças,
verbo transe da massa, óculos de raio,
colisão de vara verde na escola do tédio.
sem verbo ainda a pele do processo,
acima de tudo, um deslize adjetivo,
dentes e areia nos olhos da penumbra,
miles de minha infância, aleluia, sim!
escultura de metal com molas, prego
no caminho em música, cavalgadas
de paz como feitiço, chapéu da noite
dentro dos ossos, escola da exigência,
frequência de rua, tempo de gueto,
pulso da abstração, catarata on/off,
agulhas de mel no topo do sentido,
um dia, talvez, elegância da margem,
dança com dois punhos de algodão,
órgãos em drama de semi-esperança,
assim já não, nunca mais, agora outro
deserto memória da agonia em pêlos,
sem um verbo, desta vez sem adjetivo,
prazer de íris, maná, dilatação do susto,
culhão de maremoto, show das raças,
verbo transe da massa, óculos de raio,
colisão de vara verde na escola do tédio.
22.9.11
"a síntese"
Eu digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente.
O poeta se faz vidente por um longo, imenso e arrazoado desordenamento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para apenas guardar em si as quintessências. Inefável tortura em que ele necessita de toda a fé, de toda força sobre-humana, em que ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! – Pois ele chega no desconhecido! Visto que ele cultivou sua alma, já rica, mais do que qualquer outra! Ele chega ao desconhecido, e quando, transtornado, ele acabaria por perder a inteligência das suas visões, ele as viu! Que ele irrompa em seu salto por coisas inauditas e inumeráveis: virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes em que o outro se abateu!
Carta de René Char a Paul Demeny
O poeta se faz vidente por um longo, imenso e arrazoado desordenamento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para apenas guardar em si as quintessências. Inefável tortura em que ele necessita de toda a fé, de toda força sobre-humana, em que ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! – Pois ele chega no desconhecido! Visto que ele cultivou sua alma, já rica, mais do que qualquer outra! Ele chega ao desconhecido, e quando, transtornado, ele acabaria por perder a inteligência das suas visões, ele as viu! Que ele irrompa em seu salto por coisas inauditas e inumeráveis: virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes em que o outro se abateu!
Carta de René Char a Paul Demeny
10.9.11
"Uma vida de cão" (Henri Michaux)
Deito-me sempre muito cedo, e estafado, e no entanto não é visível, no meu dia de trabalho, nada de cansativo.
É possível que não se dê mesmo por nada.
Mas a mim, o que me espanta, é poder aguentar até à noite, e não ser obrigado a ir-me deitar logo às quatro da tarde.
O que me cansa são as minhas contínuas intervenções.
Já disse que na rua andava à pancada com toda a gente. Dou bofetadas num tipo, apalpo as mamas às mulheres, e servindo-me do meu pé como dum tentáculo, semeio o pânico nas carruagens do Metropolitano.
Quanto aos livros, são os que mais me dão cabo da cabeça. Não deixo uma palavra com o seu sentido, nem sequer com a sua forma.
Agarro-a e, após alguns esforços, arranco-lhe a raiz e desvio-a definitivamente da manada do autor.
Num capítulo há logo milhares de frases, e lá tenho eu que as sabotar todas. Isso é-me necessário.
Às vezes, algumas palavras resistem como torres. Tenho que atacá-las várias vezes e, já bem lançado nas minhas devastações, subitamente, na esquina de uma ideia, revejo a torre. Por conseguinte, não a tinha suficientemente demolido. Tenho que voltar ao princípio e encontrar o veneno para ela, e nisto passo tempos infinitos.
E uma vez lido o livro inteiro, lamento-me, pois não percebi nada... naturalmente. Não consegui engordar nada. Continuo magro e seco.
Eu pensava (não era?) que quando tivesse destruído tudo, encontraria o equilíbrio. Possivelmente. Mas o que isso demora, quanto demora!
É possível que não se dê mesmo por nada.
Mas a mim, o que me espanta, é poder aguentar até à noite, e não ser obrigado a ir-me deitar logo às quatro da tarde.
O que me cansa são as minhas contínuas intervenções.
Já disse que na rua andava à pancada com toda a gente. Dou bofetadas num tipo, apalpo as mamas às mulheres, e servindo-me do meu pé como dum tentáculo, semeio o pânico nas carruagens do Metropolitano.
Quanto aos livros, são os que mais me dão cabo da cabeça. Não deixo uma palavra com o seu sentido, nem sequer com a sua forma.
Agarro-a e, após alguns esforços, arranco-lhe a raiz e desvio-a definitivamente da manada do autor.
Num capítulo há logo milhares de frases, e lá tenho eu que as sabotar todas. Isso é-me necessário.
Às vezes, algumas palavras resistem como torres. Tenho que atacá-las várias vezes e, já bem lançado nas minhas devastações, subitamente, na esquina de uma ideia, revejo a torre. Por conseguinte, não a tinha suficientemente demolido. Tenho que voltar ao princípio e encontrar o veneno para ela, e nisto passo tempos infinitos.
E uma vez lido o livro inteiro, lamento-me, pois não percebi nada... naturalmente. Não consegui engordar nada. Continuo magro e seco.
Eu pensava (não era?) que quando tivesse destruído tudo, encontraria o equilíbrio. Possivelmente. Mas o que isso demora, quanto demora!
9.9.11
"a letra"
o que eu tinha agora, há pouco,
dentro de mim virou onça braba,
e era tão grande o bicho e pouca
vontade de estar diante do bicho
que me causava lástima, aquela
coisa sem nome, que chamamos
tia-avó, aquilo fatalmente úmido
por embaraço da letra, por clareza
da vontade da letra, mas fatalmente
de que letra vivemos, se quando
falamos, não somos nós onças?
o mesmo volume do esquecimento
que nos faz próximos, tão longe
das onças, ou das espingardas.
dentro de mim virou onça braba,
e era tão grande o bicho e pouca
vontade de estar diante do bicho
que me causava lástima, aquela
coisa sem nome, que chamamos
tia-avó, aquilo fatalmente úmido
por embaraço da letra, por clareza
da vontade da letra, mas fatalmente
de que letra vivemos, se quando
falamos, não somos nós onças?
o mesmo volume do esquecimento
que nos faz próximos, tão longe
das onças, ou das espingardas.
8.9.11
"E não estaríamos todos nós, os selvagens sensíveis, neste mesmo dilema?"
"Nesse momento, ele se voltou para mim e apontou-me com o dedo, continuando a me fulminar sem que eu entendesse bem por quê. Sem dúvida eu não podia deixar de reconhecer que ele tinha razão. Eu não me arrependia muito de meu ato. Mas tanta obstinação me espantava. Gostaria de poder tentar explicar-lhe cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Sempre estive dominado por aquilo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã. Mas é claro que, no estado a que me haviam levado, eu não podia falar com ninguém neste tom. Não tinha o direito de me mostrar afetuoso, de ter boa vontade. E tentei continuar escutando, porque o procurador começou a falar de minha alma".
(O Estrangeiro, Albert Camus)
.
(O Estrangeiro, Albert Camus)
.
3.9.11
"helder"
dizem que você se esconde nos confins
da ilha da madeira e usa um cinto firme
em volta do coração e escreve poemas
sangrentos sobre a ausência presente
das coisas atávicas, mas sinceramente,
gostaria de saber melhor como viveria
um poeta isolado do contato humano,
tão puro quanto a flor ou o incêndio.
mas será que corta lenha, usa caderno?
há que haver discernimento, é um fato,
mas alguma apresentação ao ridículo
não seria também um fato a discutir?
talvez seja questão de só ser possível
tocar a dádiva ausentando-se de tudo.
mas e a brecha, e a margem do humano?
é como se você me devesse explicações.
quanto do que é escrito é possível viver?
estamos sozinhos em cada cabana cheia.
da ilha da madeira e usa um cinto firme
em volta do coração e escreve poemas
sangrentos sobre a ausência presente
das coisas atávicas, mas sinceramente,
gostaria de saber melhor como viveria
um poeta isolado do contato humano,
tão puro quanto a flor ou o incêndio.
mas será que corta lenha, usa caderno?
há que haver discernimento, é um fato,
mas alguma apresentação ao ridículo
não seria também um fato a discutir?
talvez seja questão de só ser possível
tocar a dádiva ausentando-se de tudo.
mas e a brecha, e a margem do humano?
é como se você me devesse explicações.
quanto do que é escrito é possível viver?
estamos sozinhos em cada cabana cheia.
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