como criança sem pernas mergulho
perplexo sobre o indivisível feixe.
mais que perplexo, e na verdade
não mergulho, empurram-me em direção
ao meu destino de criança sem pernas,
e sou obrigado a me diluir ou morrer.
a escolha óbvia sobrepõe a resolução
das pendengas, sem chance ou esperança
sinto-me pasmo com o rumo das coisas,
caverna e dinheiro, as duas simbologias
me determinam e me arrancam pedaços.
as pernas que me faltam eu tento forjá-las
na cabeça, e nada me resta a não ser criar
um novo gólem, e então admitir: o futuro
é para os mortos, presente a morte anunciada.
com o que chamo de meu corpo desconhecido
parto como quem arrasta o próprio corpo
que cai do oitavo andar, os fundilhos das calças
esfarelam em contato com a pele que
os pernilongos ávidos por mim não me deixam
esquecer que é doce como doce é minha gangrena
quando as hienas se aproximam, e repentinamente
são muitas as hienas sedentas de doçura,
mitologias suicidas seduzem meu coração desesperado,
converso com as pessoas e sinto: não há outra chance
a não ser me diluir entre os operários raivosos de Londres,
partir é preciso, ou morrer, e morrer é mais preciso que partir,
mas como eu consigo manter os pés no chão! – e que pés? –
como é possível que o susto transpareça tamanha
tranqüilidade diante das cores novas!
haverá de ser como criança sem perna.
a raiva será o motor do susto contínuo, os olhos
ficarão bem abertos, a voz (isto é absolutamente necessário)
enrouquecerá a ponto de sumir ou tornar-se súplica do corpo,
então haverá, quem sabe, por fim um corpo a que se fazer ruína,
e a ruína terá então o seu lugar privilegiado de costas para o sol,
e então a carne enfraquecida falará, misturada com empecilhos
de fluidos alquímicos e graves entorpecentes, que por falta
de força e inegável inclinação ao erro em descrença
doce, como hienas são doces, crianças sem perna, meu gólem,
minha invenção em que tampouco me reconheço e, ao contrário,
me sobressai e não anda comigo, porque aqui não andarei
mais comigo, vou me deixar inocular pela raiva dos operários
e fazer com que as palavras tornem-se flores carnívoras,
porque não haverá mais agora o empilhamento
dos pedaços caídos de apenas um dos lados.
trocarei meus pedaços com outros despedaçados
e seremos um enorme corpo de possibilidades de corpo.
esqueceremos um pouco o limite que se avista
do umbral como a face da foice, andaremos até o cansaço,
nem que seja o mesmo caminho, nunca mais sozinhos
e ao mesmo tempo sendo todos um grande acúmulo,
dos nossos pedaços e dos pedaços alheios,
para brotar feito chaga de febre
sobre os ossos da beleza desdentada.
22.8.11
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
triste, mais morte do que vida, beijos.
Parece-me que faz muito bem, em ouvir Belchior. E assumir tudo aquilo que isso aporta.
Postar um comentário