somos eu, a arena, o touro.
arena mínima, touro enorme.
eu danço na frente do touro,
tento apaixoná-lo por mim.
há doçura no olhar do touro,
doçura, loucura, catástrofe.
somos parecidos de certa forma.
mas eu sei disso, ele não sabe.
meu bailado parece irritá-lo,
faz o touro andar em círculos.
paro na frente dele, mas não
há como rezar, não há tempo
para se fechar os olhos, sou
levado a correr em círculos.
fora da arena os olhares frios,
sei que deixam o touro tenso
tanto quanto a mim, que tenho
menos pernas e a pouca sorte
de saber que, com frieza, eles
riem por dentro, se divertem.
além disso, o touro não sabe
como estou sozinho, na arena
que, maior que a arena, tem
o tamanho do mundo inteiro.
o touro não sabe o tamanho
do mundo inteiro, eu também
não sei, mas, por azar, posso
imaginar: vantagem do touro.
o touro não sabe da solidão,
mas, melhor que eu, ele sente
a brasa na pele todos os dias.
compreende melhor a saliva
que lhe escorre pelo focinho.
começa a corrida, somos dois
desesperados, atrás da trégua
que nos trará água, um cafuné.
não há água, cafuné: há palmas.
nem o touro nem eu entendemos
as palmas, o que nos aproxima.
sabemos apenas que as palmas
significam “nos tirem do tédio”.
estamos juntos, de certa forma,
e tenho vontade de abraçá-lo,
passar de leve a mão na cabeça
do touro, mas ele não tem mãos
para passar na minha, só sabe
que deve me espetar seu chifre,
só conhece o vermelho depois
do espanto, enquanto eu canso,
despisto o touro como posso,
peço calma, mas ele não fala
a minha língua e os olhares
frios indicam que nem mesmo
eu falo minha língua, e corro,
dou voltas, me desequilibro,
caio, levanto, corro ainda mais.
fugimos um do outro, o touro
e eu, mas as palmas, a frieza
são grandes inimigas, nos levam
a fazer o círculo tantas vezes,
o mesmo círculo, sem motivo.
em tempo, as palmas no fim
deixam-nos, a mim a ao touro,
como mestres com suas cartolas
e delas tiramos a paz evitada
já que nosso couro é a bússola
que justifica o tédio público
e nos faz seguir em círculos,
agora uma vez mais extasiados.
enquanto abandonam a arena,
somos dois corpos exaustos,
repletos de morte e passagem.
as cercas já não nos convidam
à fuga silenciosa dos presos
perigosos, somos apenas dois
iguais, com sede de aplauso,
e estamos os dois, no mundo,
entediados de nos sabermos
fortes, fora dos planos, enfim.
31.8.09
30.8.09
"Os últimos instantes de Tim Bucley"
É com extrema dificuldade que acendo o cigarro. Não sei ainda o que está me matando. Penso nos cabelos loiros de meu filho, sei que também ele não escapará, terminará com as calças encharcadas e o estômago inchado de peixes. Minha mulher, ela nunca me entendeu, e apenas isso facilitou o nosso amor. De outra forma não haveria amor, esse élan, não haveria afinal este cigarro na boca. Só os imbecis fumam sem motivo. Adoraria ser um imbecil. Palavras tão gastas quanto a lâmina que decepou Garcia Lorca. Imagino as mortes sempre a facadas.
O frio que faz, sei que não vem de fora. Apenas sei que chove, foram muitas gotas, sinto as gotas escorrerem pelos meus cabelos. Tão bonitos eram os meus cabelos. Fartos e volumosos. “Você parece o Tim Buckley”, ela dizia. Onde estará ela? Tanto tempo não nos vemos. Ou será que foi ontem? Repentinamente me vem a imagem de Dostoievski se agachando para apanhar a pena, rumo à última hemorragia. Dostoievski tinha as pernas curtas e a testa larga e andava sem mexer os braços ou dobrar os joelhos, como se ainda estivesse com as correntes em volta do tornozelo na Sibéria. Imagino como seria Dostoievski sem camisa, os ossos do tórax protuberantes, as costas curvadas em eterno suplício epilético.
Tento com toda a força – que de todo modo míngua – lembrar a besteira que fiz, a música que não completei, estrofe mal lavada. Não queria cantar mais, talvez seja isso. Morre-se quando se deixa de cantar, e eu não queria cantar mais.
Mas não estou morrendo, não é possível. Apesar da respiração dificultosa. No mais, sinto-me tão bem. Tento alcançar a infância, milenar tradição dos moribundos. Lembro da época em que brigávamos demais. Os motivos se despedaçaram, o cancro permanece. Ficava tão deprimido que lia continuamente Carta ao Pai, do Kafka, e dizia que ela era o motivo de toda desavença. Precisamos todos de um motivo, uma carta que seja, que nos cuspa à face. Acredito que as pessoas enlouqueçam por terem muitas opções, inclusive a Carta ao Pai, do Kafka, como concreto para a desavença.
Engraçado ter alcançado o papel. Parece algo pressuposto, que se tem que fazer. A embriaguez me impede de pensar direito, e nem bem tenho muito o que dizer, mas sinto-me levado a dizer qualquer coisa – talvez que a embriaguez seja apenas um assumir sem ironia.
O frio que faz, sei que não vem de fora. Apenas sei que chove, foram muitas gotas, sinto as gotas escorrerem pelos meus cabelos. Tão bonitos eram os meus cabelos. Fartos e volumosos. “Você parece o Tim Buckley”, ela dizia. Onde estará ela? Tanto tempo não nos vemos. Ou será que foi ontem? Repentinamente me vem a imagem de Dostoievski se agachando para apanhar a pena, rumo à última hemorragia. Dostoievski tinha as pernas curtas e a testa larga e andava sem mexer os braços ou dobrar os joelhos, como se ainda estivesse com as correntes em volta do tornozelo na Sibéria. Imagino como seria Dostoievski sem camisa, os ossos do tórax protuberantes, as costas curvadas em eterno suplício epilético.
Tento com toda a força – que de todo modo míngua – lembrar a besteira que fiz, a música que não completei, estrofe mal lavada. Não queria cantar mais, talvez seja isso. Morre-se quando se deixa de cantar, e eu não queria cantar mais.
Mas não estou morrendo, não é possível. Apesar da respiração dificultosa. No mais, sinto-me tão bem. Tento alcançar a infância, milenar tradição dos moribundos. Lembro da época em que brigávamos demais. Os motivos se despedaçaram, o cancro permanece. Ficava tão deprimido que lia continuamente Carta ao Pai, do Kafka, e dizia que ela era o motivo de toda desavença. Precisamos todos de um motivo, uma carta que seja, que nos cuspa à face. Acredito que as pessoas enlouqueçam por terem muitas opções, inclusive a Carta ao Pai, do Kafka, como concreto para a desavença.
Engraçado ter alcançado o papel. Parece algo pressuposto, que se tem que fazer. A embriaguez me impede de pensar direito, e nem bem tenho muito o que dizer, mas sinto-me levado a dizer qualquer coisa – talvez que a embriaguez seja apenas um assumir sem ironia.
Se o cérebro funciona à toda, o corpo hesita. Veste a roupa, meu amigo, veste a roupa e sai. As pernas usam patins e não escolhem a direção. Palavras nunca foram o suficiente e aqui estou, sem palavras, explicando coisas que se contradizem.
Há dias em que o sol está tão forte e a luz é tão bonita, que não resta mais nada para nós. É horrível, ele revela sem rodeios a desgraça da contradição humana, o mito de Ícaro talvez. Queremos a luz, queremos ser luz, ou ao menos olhar para ela, mas quanto mais perto dela estamos, mas inadequados nos sentimos. Como alguém que, mesmo não sendo muito feio, perto de alguém lindo, torna-se horrível.
Talvez eu seja mesmo Tim Buckley, já que tenho marcas azuladas nos meus braços e pernas. De fato, sou Tim Buckley diante das pedras que se dissolvem em mágoas e blues com gemidos falhos. Há um homem na minha frente. Parece conhecido, parece miragem. Ele se afasta de repente, se afasta e esconde alguma coisa. Talvez o vício nos transforme em alguém que se parece com alguém que vagamente conhecemos, e somos nós. Talvez a morte, essa coisa doce.
Sinto vontade de ir atrás do homem que há pouco estava na minha frente, dizer a ele que não terá tudo sozinho, que preciso de mais, um pouco mais para ser menos vagamente o que já não reconheço. Mas ainda está nítido na memória: “Você se parece tanto com Tim Buckley”, me disse ela, uma vez. A memória de repente é isso. Lembrar de quando éramos parecidos com o que já não somos.
Maldito sol, melodia que estoura os tímpanos, que nos arrasta na direção do tempo. Uma queda no tapete e é tudo. A última visão da cópula entre pássaros. Coçar a cabeça, lembrar o antigo gesto, sonho de mulheres e homens duvidosos. Somos as cinzas de uma nova era. Coçar a cabeça e, de repente, cair. Cair irremediavelmente, atingir por fim o método. Beijar o sol com escorbuto. Dizer te amo, deixar. Rimbaud.
28.8.09
"minuto de sabedoria"
"A frase que se segue é falsa. A que a precede é verdadeira." (Epimênides)
"Amor é dar a alguém que não quer aquilo que não se tem." (Lacan)
"Amor é dar a alguém que não quer aquilo que não se tem." (Lacan)
27.8.09
"sumiu belchior"
sabe-se apenas que belchior
quebrou o punho há dez anos.
não sabem dele família, mpb,
parece que há dívidas: 18 mil,
em carros abandonados, ócio.
outros dizem: tirou o bigode,
viu gauguin, pintou-se demais,
sem bigode frente ao espelho.
letras de fé total, de inaptidão,
as fizeram-se concretas, enfim.
dizem más línguas que lê mão.
chegou ontem a vaga notícia
de que sua obra fica sem fim.
esperei horas, belchior, dias,
pensando no paradeiro de mim.
quebrou o punho há dez anos.
não sabem dele família, mpb,
parece que há dívidas: 18 mil,
em carros abandonados, ócio.
outros dizem: tirou o bigode,
viu gauguin, pintou-se demais,
sem bigode frente ao espelho.
letras de fé total, de inaptidão,
as fizeram-se concretas, enfim.
dizem más línguas que lê mão.
chegou ontem a vaga notícia
de que sua obra fica sem fim.
esperei horas, belchior, dias,
pensando no paradeiro de mim.
23.8.09
"poema feliz"
estar aqui é recolher as lágrimas
de um drama transposto em muitas cores.
passa um pouco da meia-noite
e é como se fosse a primeira vez.
sinto vontade de escrever algo bonito,
que não seja grandioso, mas faça alguém feliz,
que traga talvez algum primeiro sorriso.
um quadro de Chagall, com minha mãe no centro.
ela tinha um rosto bonito, que justificava a guerra,
um rosto contraditório, presságio de papoulas.
a sensação atual é de patinação no gelo.
penso nos meus amigos, acredito que todos,
de alguma forma, seguem bem seus caminhos
e isso, no frio atípico de uma cidade silenciosa,
me traz um conforto mágico.
onde estarão? será que ainda pensam em mim?
penso neles todos os dias, mesmo com dores no estômago,
e a eles dou de presente uma esperançosa distância.
a proximidade destrói, estou cada vez mais certo disso.
os carros passam velozes e imagino para onde
estarão levando cada tristeza.
ah, meu pai, faça um novo filho, seja feliz,
ande de bicicleta, tome seus iogurtes.
penso em ti enquanto, no cômodo contíguo,
minha mulher dorme um sono fundo, sonoro,
embalado de cansaço e luz silenciosa.
há um mistério que preciso assumir.
meu nome é um anagrama da palavra namoro,
me dei conta disso muito tarde, será tarde demais?
tenho saúde, um belo pescoço, meus olhos dizem
coisas sutis que sempre contradizem
as expectativas frágeis da noite.
queria cessar a idéia da guerra e que pudéssemos,
enfim, dar as mãos, não mais colher flores mortas.
rapidamente acumulo frases.
queria poder esvaziá-las de sentido e que apenas
trouxessem o bem, tirassem meus cotovelos da janela.
receber no corpo a concepção do amor conjunto
traz malogros, o corpo suporta melhor as cicatrizes.
fecho os olhos, o ponto da brasa anuncia a solidão,
leve solidão de um tempo em que pensar
o carinho já não significa mais cartas longas,
passagens para o Caribe, um sol azul.
ainda posso sorrir, tudo que tenho
darei a vocês, desconhecidos, a quem amo
porque sem saber me levam
com rapidez pela passagem de gelo.
de um drama transposto em muitas cores.
passa um pouco da meia-noite
e é como se fosse a primeira vez.
sinto vontade de escrever algo bonito,
que não seja grandioso, mas faça alguém feliz,
que traga talvez algum primeiro sorriso.
um quadro de Chagall, com minha mãe no centro.
ela tinha um rosto bonito, que justificava a guerra,
um rosto contraditório, presságio de papoulas.
a sensação atual é de patinação no gelo.
penso nos meus amigos, acredito que todos,
de alguma forma, seguem bem seus caminhos
e isso, no frio atípico de uma cidade silenciosa,
me traz um conforto mágico.
onde estarão? será que ainda pensam em mim?
penso neles todos os dias, mesmo com dores no estômago,
e a eles dou de presente uma esperançosa distância.
a proximidade destrói, estou cada vez mais certo disso.
os carros passam velozes e imagino para onde
estarão levando cada tristeza.
ah, meu pai, faça um novo filho, seja feliz,
ande de bicicleta, tome seus iogurtes.
penso em ti enquanto, no cômodo contíguo,
minha mulher dorme um sono fundo, sonoro,
embalado de cansaço e luz silenciosa.
há um mistério que preciso assumir.
meu nome é um anagrama da palavra namoro,
me dei conta disso muito tarde, será tarde demais?
tenho saúde, um belo pescoço, meus olhos dizem
coisas sutis que sempre contradizem
as expectativas frágeis da noite.
queria cessar a idéia da guerra e que pudéssemos,
enfim, dar as mãos, não mais colher flores mortas.
rapidamente acumulo frases.
queria poder esvaziá-las de sentido e que apenas
trouxessem o bem, tirassem meus cotovelos da janela.
receber no corpo a concepção do amor conjunto
traz malogros, o corpo suporta melhor as cicatrizes.
fecho os olhos, o ponto da brasa anuncia a solidão,
leve solidão de um tempo em que pensar
o carinho já não significa mais cartas longas,
passagens para o Caribe, um sol azul.
ainda posso sorrir, tudo que tenho
darei a vocês, desconhecidos, a quem amo
porque sem saber me levam
com rapidez pela passagem de gelo.
21.8.09
"retrato n. 2"
minhas raízes são remotas,
desvanecidas, elas remontam
assassinatos diários entre famílias
que se comunicavam aos gritos
em dialetos mortos, sob lava,
com machadinhas sem fio,
que faziam sua modesta lei
partindo ossos sem valor.
talvez daí venha a atração
por ruelas com mal cheiro
onde a qualquer momento
há possibilidade de morte.
daí talvez as letras firmes,
sem forma muito definida,
que denotam transtornos
psicológicos preliminares.
ademais, a testa proeminente,
ossos que, restantes, estalam
encaixotados em carne dura
e dizem qualquer coisa do sangue
volátil, que sobe rápido às idéias,
passos curtos na direção duvidosa,
passos curtos, de pernas amarradas
que apenas apontam trilhas, pedras,
que fundam feridas abstratas, leis.
a saúde dos olhos indica apenas
lascas de tempo sobre chão frio.
da incomunicabilidade selvagem
arregalada em suores trêmulos,
fiz a sala onde vivo dos restos.
as uvas do prazer, invariavelmente
elas terminam em restos gástricos.
fui revelado no atropelamento
de anotações absurdas, pautadas
livremente pelo ritmo das ruas.
há que se endurecer ainda mais
após a revolução sem ternura,
ser o balaio mediterrâneo feito
do calor córsego, que escorre
pela incompreensão enojada
do mistério que avança frente à face
e enche os livros de tédio e filosofia
enquanto, em quartos acarpetados de
paredes lisas, cadeiras de assento duro
premeditam a ambivalência teimosa.
os pés já não tocam mais o chão.
de partir, não suportam mais dançar
um sapateado divertido em brasa,
do agrado dos calvos de braguilhas
abertas, dos senhores recomendados,
enfileirados nas prateleiras públicas.
uma vez o Fred Astaire, hoje a ponte
desfeita a cada passo diante do nada.
como nos filmes ruins de aventura,
sem ter permissão para olhar atrás,
enquanto moedas brotam dos esgotos
da moral cívica – uma vez o maníaco
agarrado em alto-mar a gelados remos.
vejo que perdi coisas, isso é notável.
mas faltam-me as marcas da escolha
conflitante – ainda acredito em deus.
não alimento escrúpulos,
sou um homem correto.
não exatamente um dândi,
operário com unhas limpas.
muito difícil é prever a amputação,
falar sem voz pela geração festiva
quando os pés se agitam em doença.
uma vez a superfície da lua, hoje a porta
escancarada – nenhum pedido de retorno.
o fracasso é o hábito,
disse aquele homem
que morreu de amor.
desvanecidas, elas remontam
assassinatos diários entre famílias
que se comunicavam aos gritos
em dialetos mortos, sob lava,
com machadinhas sem fio,
que faziam sua modesta lei
partindo ossos sem valor.
talvez daí venha a atração
por ruelas com mal cheiro
onde a qualquer momento
há possibilidade de morte.
daí talvez as letras firmes,
sem forma muito definida,
que denotam transtornos
psicológicos preliminares.
ademais, a testa proeminente,
ossos que, restantes, estalam
encaixotados em carne dura
e dizem qualquer coisa do sangue
volátil, que sobe rápido às idéias,
passos curtos na direção duvidosa,
passos curtos, de pernas amarradas
que apenas apontam trilhas, pedras,
que fundam feridas abstratas, leis.
a saúde dos olhos indica apenas
lascas de tempo sobre chão frio.
da incomunicabilidade selvagem
arregalada em suores trêmulos,
fiz a sala onde vivo dos restos.
as uvas do prazer, invariavelmente
elas terminam em restos gástricos.
fui revelado no atropelamento
de anotações absurdas, pautadas
livremente pelo ritmo das ruas.
há que se endurecer ainda mais
após a revolução sem ternura,
ser o balaio mediterrâneo feito
do calor córsego, que escorre
pela incompreensão enojada
do mistério que avança frente à face
e enche os livros de tédio e filosofia
enquanto, em quartos acarpetados de
paredes lisas, cadeiras de assento duro
premeditam a ambivalência teimosa.
os pés já não tocam mais o chão.
de partir, não suportam mais dançar
um sapateado divertido em brasa,
do agrado dos calvos de braguilhas
abertas, dos senhores recomendados,
enfileirados nas prateleiras públicas.
uma vez o Fred Astaire, hoje a ponte
desfeita a cada passo diante do nada.
como nos filmes ruins de aventura,
sem ter permissão para olhar atrás,
enquanto moedas brotam dos esgotos
da moral cívica – uma vez o maníaco
agarrado em alto-mar a gelados remos.
vejo que perdi coisas, isso é notável.
mas faltam-me as marcas da escolha
conflitante – ainda acredito em deus.
não alimento escrúpulos,
sou um homem correto.
não exatamente um dândi,
operário com unhas limpas.
muito difícil é prever a amputação,
falar sem voz pela geração festiva
quando os pés se agitam em doença.
uma vez a superfície da lua, hoje a porta
escancarada – nenhum pedido de retorno.
o fracasso é o hábito,
disse aquele homem
que morreu de amor.
13.8.09
"Retrato n. 1"
Sou este senhor, fumando cachimbo, de terno e gravata, vestido de verde, que acaba de chegar em Paris, em 1886, um pouco convencional, posando diante de um fundo escuro. Convencional? Vocês não olharam bem: vejam como no marrom das sombras escorregam, em volta de meu rosto, na minha orelha, pinceladas vermelhas cor de brasa, cor da pequena brasa, do meu bigode, que os tons sombrios não conseguem conter. Vejam como o lado esquerdo do meu rosto é banhado por uma luz amarela que o pincel um pouco frenético fez subir pelo nariz, sobrancelhas, testa; como são chamas meus cabelos; como pareço estar recebendo os reflexos de um incêndio. E como, neste retrato feito de escuro e de fogo, meus olhos, dois carvões extintos, olham inquisidores para você.
do livro "Vincent Van Gogh - A Noite Estrelada" (Ed. Perspectiva, 2006), de Jorge Coli.
"a coisa séria"
gostaria de dizer uma coisa séria.
um segredo irrefutável, que seria
a válvula de amor que deglutisse
e passasse para o outro lado a foice
e por todo outro lado estaria tudo
que um dia foi dito e agora pende
como as carnes de um frigorífico.
o que gostaria de dizer está longe
do tal impulso criativo embasado.
o que gostaria de dizer é sério demais,
impossível dar risada, é deixar a boca reta.
ouvir seria difícil, melhor os encontros lotados,
dançar a noite inteira, beber, vestir o sobretudo.
na noite vazia, aos hipócritas, óculos escuros.
mas não há métodos para se fazer parar de rir,
a coisa séria não terá vez, talvez jamais.
um segredo irrefutável, que seria
a válvula de amor que deglutisse
e passasse para o outro lado a foice
e por todo outro lado estaria tudo
que um dia foi dito e agora pende
como as carnes de um frigorífico.
o que gostaria de dizer está longe
do tal impulso criativo embasado.
o que gostaria de dizer é sério demais,
impossível dar risada, é deixar a boca reta.
ouvir seria difícil, melhor os encontros lotados,
dançar a noite inteira, beber, vestir o sobretudo.
na noite vazia, aos hipócritas, óculos escuros.
mas não há métodos para se fazer parar de rir,
a coisa séria não terá vez, talvez jamais.
8.8.09
"sarney"
o mundo está perto
de acabar então posso
falar livremente.
são todos homens
de poder fechando
seu ternos de cortes
sangrentos, ilustres.
os rostos vermelhos,
ilustres, se fecharam
para a raça do amor.
mas nós, os homens
ditos sem importância,
sangramos palavras
pela garganta infinita
diante de espelhos
ensebados a óleo.
e amamos demais.
de acabar então posso
falar livremente.
são todos homens
de poder fechando
seu ternos de cortes
sangrentos, ilustres.
os rostos vermelhos,
ilustres, se fecharam
para a raça do amor.
mas nós, os homens
ditos sem importância,
sangramos palavras
pela garganta infinita
diante de espelhos
ensebados a óleo.
e amamos demais.
7.8.09
"cotovelos"
não mais escrever com os cotovelos.
não que seja exatamente uma falha,
é um querer estar longe dos braços,
que tramam corrupções metafísicas.
nessa manhã fria de julho, o vento
faz uma torcida ansiosa por sangue.
acendo um cigarro por indiferença,
rasgado do corpo, longe dos sentidos.
sigo em voltas infinitas e, sem porto,
trago fundo o que jamais realizarei.
serei aquele que pede com os olhos,
que sente passando a oportunidade?
sinto ganas de dizer “então vamos”,
mas sei que ficarei parado, ao lado,
uma mulher a quem prometi coisas
liga a televisão, fecha porta: fuma.
não suportamos o cigarro e fumamos.
resta dizer “em frente”, ir para o lado,
engolir à seco a centopéia já sem vida.
ganas de dizer qualquer coisa do azul.
versos tristes e sem ritmo não falam
da dor do que separa, permanecendo
fora da cama, com olhos arregalados,
colhendo os cacos da nova pobreza.
massageio os cotovelos, que faltam
nas frases que um dia foram de luta.
agora inauguram a fase antecedente
de uma morte por dia, sem emoção.
vontade de engolir, de beijar, de ir.
para onde foram sem me dar aviso?
livros cansam as prateleiras, caixas
entopem as veias um dia pulsantes.
restaria alguma coisa talvez na frase
desavisada da qual a grande surpresa
seria a boca ressequida, saliva lateral,
que faz do futuro um risco desbotado.
é puxar o trago dessa respiração difícil,
inclinar o rosto, à espera do improvável,
para dizer justo o que não deve ser dito:
raspar a panela do peito, sem os braços.
não que seja exatamente uma falha,
é um querer estar longe dos braços,
que tramam corrupções metafísicas.
nessa manhã fria de julho, o vento
faz uma torcida ansiosa por sangue.
acendo um cigarro por indiferença,
rasgado do corpo, longe dos sentidos.
sigo em voltas infinitas e, sem porto,
trago fundo o que jamais realizarei.
serei aquele que pede com os olhos,
que sente passando a oportunidade?
sinto ganas de dizer “então vamos”,
mas sei que ficarei parado, ao lado,
uma mulher a quem prometi coisas
liga a televisão, fecha porta: fuma.
não suportamos o cigarro e fumamos.
resta dizer “em frente”, ir para o lado,
engolir à seco a centopéia já sem vida.
ganas de dizer qualquer coisa do azul.
versos tristes e sem ritmo não falam
da dor do que separa, permanecendo
fora da cama, com olhos arregalados,
colhendo os cacos da nova pobreza.
massageio os cotovelos, que faltam
nas frases que um dia foram de luta.
agora inauguram a fase antecedente
de uma morte por dia, sem emoção.
vontade de engolir, de beijar, de ir.
para onde foram sem me dar aviso?
livros cansam as prateleiras, caixas
entopem as veias um dia pulsantes.
restaria alguma coisa talvez na frase
desavisada da qual a grande surpresa
seria a boca ressequida, saliva lateral,
que faz do futuro um risco desbotado.
é puxar o trago dessa respiração difícil,
inclinar o rosto, à espera do improvável,
para dizer justo o que não deve ser dito:
raspar a panela do peito, sem os braços.
2.8.09
"agosto"
agosto chega se arrastando
com seus dentes curtos,
ensebados, de cadáver recente,
assassinado por vingança.
agosto preferiu calar-se
a cometer os mesmos equívocos.
agosto, coitado, não sabe
que sem os equívocos nos resta
muito pouco.
agosto não deveria se chamar agosto.
não tem gosto de quase nada,
passa em meio às catástrofes epidêmicas,
à sede irreconhecível do povo sem traços.
agosto poderia facilmente
se chamar Agripino, Nazareno, Vigário.
não existem limites
para os buracos que agosto
abre nos peitos desacostumados
a estarem no meio de algo caótico,
no meio de um ano, no meio da rua,
no meio entre as gentes sem olhos,
Tirésias pós-mitológicos entre números,
no meio do antigo estupro, inapelável,
no meio de um sorriso que se quebra.
agosto está muito velho para voltar atrás
e muito novo para seguir até o fim.
agosto sofre de circulação dificultosa,
amputaram – sorrindo – as pernas de agosto.
agosto não vai nem vem,
está de muletas na prancha do pirata.
às vezes agosto é o ano todo.
quantas vezes, vivendo outros nomes
na estranheza de uma nova anormalidade,
fora dos eixos, incompreensível,
não pensamos, simplesmente: “agosto”.
ah, gosto que nos tiraste da boca...
ah, vento no cabelo do significado...
revela de uma vez tua maldita face,
terror que está por vir, ou nos deixe
voltar ao túmulo da primeira margem,
porque agosto nem bem começou,
e já não tenho forças, não posso mais.
com seus dentes curtos,
ensebados, de cadáver recente,
assassinado por vingança.
agosto preferiu calar-se
a cometer os mesmos equívocos.
agosto, coitado, não sabe
que sem os equívocos nos resta
muito pouco.
agosto não deveria se chamar agosto.
não tem gosto de quase nada,
passa em meio às catástrofes epidêmicas,
à sede irreconhecível do povo sem traços.
agosto poderia facilmente
se chamar Agripino, Nazareno, Vigário.
não existem limites
para os buracos que agosto
abre nos peitos desacostumados
a estarem no meio de algo caótico,
no meio de um ano, no meio da rua,
no meio entre as gentes sem olhos,
Tirésias pós-mitológicos entre números,
no meio do antigo estupro, inapelável,
no meio de um sorriso que se quebra.
agosto está muito velho para voltar atrás
e muito novo para seguir até o fim.
agosto sofre de circulação dificultosa,
amputaram – sorrindo – as pernas de agosto.
agosto não vai nem vem,
está de muletas na prancha do pirata.
às vezes agosto é o ano todo.
quantas vezes, vivendo outros nomes
na estranheza de uma nova anormalidade,
fora dos eixos, incompreensível,
não pensamos, simplesmente: “agosto”.
ah, gosto que nos tiraste da boca...
ah, vento no cabelo do significado...
revela de uma vez tua maldita face,
terror que está por vir, ou nos deixe
voltar ao túmulo da primeira margem,
porque agosto nem bem começou,
e já não tenho forças, não posso mais.
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