O que se sabe é que o homem de neandertal foi extinto porque não tinha medo. Se jogava em qualquer buraco, abria espaço com os próprios punhos, tinha crença numa linha reta, inescapável. Todos morreram, invariavelmente, por não terem medo. E nos dizem diariamente: “Vamos, não tenha medo”. Repetimos diariamente os gestos do homem de neandertal. Primeiro abrimos as gavetas erradas, de lá tiramos a venda com que falece o nosso discernimento. Vestimos a venda e cuidamos da pele; para não envelhecer, vejam só! As carnes demoram em nossos estômagos, precisamos invadir as cavernas mais escuras, buscar uma ilusão de marfim e azul ciano. As frutas são sensações rápidas, beijos gelados na testa em chamas. Mas dos nossos corpos sumiram os pêlos, uma radioatividade secular enegrece os nossos pulmões e dá de comer a bactérias caninas. Nossa fome nos leva aos encontrões pelas ruas, rumamos pelo espaço curto em busca da distância comprida. Desempenhamos tarefas cotidianas que são como pular em buracos em meio a disputas doentias. Nosso tempo se passa aos gritos surdos, gritos altos, que não se escutam. O que se sabe é que o homem de neandertal não tinha sexo definido, um coleguinha já disse que ele até dava o cu. O pobre homem, decapitado de sua evolução primal, bate nos peitos, grita duas frases e pula, sabe-se lá onde vai cair, muito menos ele sabe se vale a pena pular. Algo lhe espeta a nuca, o peso de séculos e mais séculos de graves senhores comidos pelo câncer, olhando de braços cruzados, esperando o veredicto do “pular-às-cegas-em-terreno-aberto”. Não há veredicto. Destemidos, quantos abutres já não se alimentaram da vossa carne? Chegou a hora de sentir medo, de ser humano? Levantar e deitar num liga-apaga de movimentos todos secundários, como que descolados: corpos sem milagre. E lá vamos nós, os de queixo prognata que não sabem segurar flores ou comer com garfo e faca. Destemidos perderemos a cabeça e ganharemos páginas provisórias. Ah, como sentimos medo! Carregamos um peso de corpos empilhados em tempos ancestrais. Compramos, sim, flores, a simpatia de um amigo, os votos de um povo. Vivemos em bando, o contato da carne nos diverte. O que não se sabe é sobre aquilo que não cabe mais, que não desgruda dos ossos e faz tremer durante o sono. Essa herança maldita, de se desdobrar em mil desconhecidos para não chegar a lugar algum. Essa cruz de repetição mitológica aos domingos e durante a semana, símbolos que se atropelam atraindo nossos cotovelos aos parapeitos venenosos. Ah, como sentimos medo! Seguimos e nos acostumamos facilmente com as dores de estômago, com os romances russos que falam sobre homens com mais rugas do que nós, nós os que pulamos e temos medo e somos o elo perdido entre espécies dizimadas. Pulamos com medo, caímos, olhamos para frente, sorrimos, olhamos para trás, voltamos ao pavor. Os olhos espremidos por solas grossas de coturnos sombrios já não se mexem e pedem, suplicam qualquer coisa. Mas o tempo exige sua dose de penhascos e pulsos vermelhos. Fizemos o possível, nascemos esperando chances das quais fugimos, por tédio. Não podemos esperar por mais nada, não temos mais pernas para andar sem ver a borda. Temos medo, acabaram nossos penhascos. Somos homens de neandertal sem a sorte das salas patéticas dos museus da história humana, pequenos fatos feitos a tinta e lascas e muita prostituição. Nossos pêlos, cancerígenos, foram comidos pela febre antiga, que corrói as espécies até que seremos apenas almas e uma história sem parágrafo, fim, começo, nada além de uma página e toda a aridez do universo conspirando aos risos contra o nosso sacrificado destino de ter que perdurar, sem escapatória, perdendo membros, sem respostas, ganhando vultos, dissecando a ternura como um cadáver meigo, realizando feitos em altas rotações, para IMENSAS corporações. Que boa seria a extinção se ao menos tivéssemos de volta a luta válida, o impulso cego que move a vida em direção ao núcleo fragmentado. Mas uma névoa cai sobre a cena por dentro da mata e um clarão entra por cima da névoa, entre árvores milenares, e não se sabe se é uma dádiva ou o fim de mais uma era, não temos mais as estacas de madeira e as mãos peludas. Os dentes são podres, mas há doenças, existem as aparências e objetos de disfarce. O medo. Ele está em toda parte, no esbarrão na esquina movimentada, nos beijos secos em noites sem áudio, nos pedidos de casamento e nas cartas de amor. Está, principalmente, na hesitação que leva ao ódio a palavra de carinho. E com medo morremos de medo, sonhando morremos de tédio, agindo entediamos os sonhos, e sem medo morremos, como morreram os homens de neandertal.
14.6.09
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