28.6.09

"dessa vez a África não será estuprada"

África do Sul x Espanha

disputa pelo terceiro lugar na Copa das Confederações 2009

O único jogador branco da África do Sul tem 1,98m, é o maior jogador da Copa das Confederações. Ironia? Pois é o único nome gritado em uníssono pela torcida, um nome que parece um soco no estômago: Booth.

O que aconteceu mais cedo não foi um jogo de futebol. Havia milhões de litros de sangue, peles decalcadas à brasa, poder, empreendimento, economia, genocídio: os pilares do homem moderno.

A colônia tinha a chance de expulsar os europeus, “os melhores do mundo”, a pontapés do seu território. Talvez o tempo pisoteado, a força do trovão ancestral, o extermínio natural das doenças sem origem, talvez a ponta do chicote tenha feito da África do Sul um dínamo potencial, violência que é soma de todas as injustiças, representada em campo por sua equipe de futebol, treinada, aliás, por um autêntico brasileiro de nariz largo, mestiço malandro com gosto por cachaça e crendices, bruxo embusteiro de extrema simpatia. Contra eles: milênios de exploração – mas os temporais mais fortes adubam os melhores terrenos.

Massacrados, famintos, os africanos quebravam ao meio a Península Ibérica. A torcida repetia movimentos como o da enxada genocida sobre tribos anteriores à História. Os africanos pisavam os espanhóis como cacau na esteira, arrancavam os chifres da fúria fidalga cheia de brotoejas, vinho e germes, e davam um nó nas patas da besta vermelha.

Mas o que pode explicar a questão da África, quando até os intelectuais idealistas recolheram suas pantufas, e alimentamos nossos cérebros com o câncer causado pelos aparelhos celulares feitos com as tripas do pecado sorridente? Não há, definitivamente, a “Justiça Divina”. Os africanos levaram dois gols em um minuto, no final do segundo tempo: uma síntese do Melhor do Milênio, e mais uma vez a África seria estuprada. O mesmo espanhol outra vez tirou as calças com o corpo suado e penetrou a carne escura que é a prova do fim dos tempos. O povo, inerte, não sabia o que fazer, o que sentir, como sentir. O transe seguia fúnebre, os corpos serpenteavam agora como pisando estacas envenenadas, as mãos nas cabeças, as rezas pagãs. Secaram as lágrimas da África.

Mas há uma raiva, uma raiva inexplicável de quem comeu o chão do mundo. Uma raiva por todos os olhares bicudos de senhores que carregam o conteúdo principal nos seus suspensórios, uma raiva que é da impossibilidade de não se cantar gemendo, uma raiva que é a gargalhada de uma potência açoitada, a dança tribal da perplexidade violentada, raiva que é uma bomba com as duas pernas no alto, Mphela, Mphela, Mphela, foi esse nome peculiar que, ironicamente, por mais que parecesse uma súplica, dessa vez salvou a África do Sul do estupro legalizado. Sem armas, não existe império. Tudo é caos, revelação do fim de mais uma era. O último suspiro depois do aço na espinha contaminada.



Epílogo


Na prorrogação a Espanha fez um gol e acabou ficando com a terceira colocação. Mas foi possível ver as cabeças decepadas erguerem seus narizes para fora da terra, foi possível ver Michael Jackson com sua camisa do Olodum, os carbonários dos últimos tempos irreconhecíveis de tão curtos, dos livros de história branca e carrancas mitológicas, todos saíram da terra e cobraram sua parcela de grito, de potência amordaçada.

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