24.8.07

"Carta" (Carlos Drummond de Andrade)

Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

"não vão"

não
tome tanto cuidado
com as coisas que passam.
não antecipe o cuidado
dos tombos logo a frente.
elas passarão, as coisas
– e mesmo sem cuidado.
nós ficaremos e as coisas
essas, sem nós, passarão.
até que nós passaremos
e veremos no final
das coisas as coisas
rindo do nosso esforço
vão.

"a cidade nova"

estou seco, amor, você me ouve?
estou triste, raso, dos pés calosos.
sei que não há tempo para perdão e flores,
mas um cacto, amor, não custa os olhos.

e haverá afinal algo que ainda pulse pálido
sem ar além do ar salino na terra frígida
abafada de vícios em retinas-cornucópias.
haverá sol no fundo de algo que ainda sinta
cotovelos secos que se esbarram em ruas novas,
onde há morte e fome, amor e mito, correria,
algo à procura da sombra de um coqueiro-memória,
existe sim qualquer coisa de gris por trás da esquina,
mais por dentro da pele, algo que talvez alcance,
se eu mergulhasse fundo e não sangrasse tanto
do sangue da vergonha do sangue ante-sofrido,
talvez do mergulho desavisado viesse o ovo
primordial de que tanto falam nossos queridos
caios carlos clarices césares concretos corvos
que por ti por nós o alimento escasso digerido
nas bocas cortadas de preâmbulos e escorbuto,
além de tudo o que das mãos me escorre frágil
e de mim não se fez, mas me segue nas ruas
em passadas largas de “prestes ao interrogatório”.

se fundo eu apenas mergulhasse – como descendo
pela espessa avenida e cruzando entroncamentos,
ultrapassando dunas que tanto mais eu subo descem
– nas feridas abertas como em córregos coléricos,
tracejando crises brandas em copos mal-lavados,
surpreso passo a passo, e a cada segundo,
pelo segundo surpreso de cada passo eu cavo
incríveis e silenciosas atrocidades do coração.

e que ainda há flores no deserto, eu lhe direi.
e colheremos nem que seja a terra íntima das unhas,
e carregaremos nossos corpos quem sabe até o mar,
onde as ondas não vacilam e a solidão abandona o corpo
comido da bicheira, talvez nesses momentos, talvez agora,
poderíamos dar-nos todos as mãos, enfim silenciosos,
e abandonar de vez os poemas que são pingos ralos
de nós quando já tarda o senso e se atrasam os sinos
- quando não há mais diferença entre o corpo e o chão.

Fortaleza, agosto de 2007.

"Bruma" (Moreira Campos)

Chovia.
A pequena estação.
Meu acanhamento adolescente
diante do mal que consumia meu pai.
Quase como se pedisse desculpas,
me escusasse diante dos olhos curiosos
que lhe surpreendiam e seguiam a ruína.
Os grandes ossos a furar-lhe o paletó de brim,
a devastação da face,
o brilho febril de suas órbitas profundas.
O acesso de tosse,
a sua ânsia,
o lenço,
possivelmente manchado de vermelho.
A lembrança sobretudo do seu pobre e inútil guarda-chuva.
Deixava-o ali para a tentativa impossível de uma cura na serra.
Talvez sua mão (sua descarnada mão)
tivesse pousado de leve sobre a minha cabeça.
Sua última imagem se dilui
nas gotas d'água que caíam lentas do beiral da estação
(da pequena estação).
Restou-me de tudo, e para sempre,
a mágoa daquele acanhamento adolescente,
do meu vexame,
do meu quase pedido de desculpas aos curiosos.

Quando chegam as primeiras águas,
fragmento-me no tempo,
e sou bruma.

6.8.07

"agosto"

em agosto
as escadas criam caninos,
os olhos verdes, abutres,
perdem esquinas e mapas.

em agosto
o suor piche das estátuas
é a poça punho do sangue
de quem grita e não existe.

em agosto
as asas punhais do suicídio
cavam um rosto na montanha
– o mar vomita poemas toscos.

em agosto
comparecemos ao velório da noite,
esperando a organização dos erros,
a testa fria da aprovação infame.

em agosto
românticos trazem livros em branco,
ninfetas recortam retratos desbotados,
o buraco se abre, o instante se cala.

"talvez seja o frio, Murilo Mendes"

você estava certo, Murilo Mendes:
o demônio tem mais poder que deus.

o demônio é o poder, a busca repleta,
o medo da imagem da mesma derrota.
o demônio é a morte usando smoking,
enquanto deus é a vida de calças curtas.

o demônio é a vida estabelecida a priori.
são as estátuas nas tabernas, muro-sorrisos.
são precipícios arrasados pela chuva fina.

o demônio é o excedente das palavras,
enquanto deus é a ausência de poder,
enquanto deus é a ausência de palavra.

deus é a glorificação da necessidade,
a incapacidade de estancar o sangue.
deus é a beleza da incapacidade de...

o demônio anda apressado pelas ruas,
o demônio vê as horas e nos dá de comer.
ele paga para, sujo, não se comprometer.

deus erra porque não acredita na maldade,
pior, duvida que é deus e, por humildade,
mata os que, por demônios em cativeiros,
vingam o filho doido que morreu na cruz.

"infância"

apesar de tudo, nada, criança adulta,
até os confins elásticos do relâmpago.
há ainda o lampejo de um trompete,
um terremoto no mover de uma batuta,
um sopro infinito que, calmo, desce
e toca a nuca fria das tuas lembranças.
não te aflige, adulta criança, calma.
corre e diz a todos que há esperança.
a dor mais funda ainda está distante,
o precipício é a cama em que te deitas.
enquanto a fatalidade está à espreita,
chora, criança adulta, te aconchega.
depois dorme enquanto fere o espinho
e deixa tudo o mais para outro dia.
enquanto houver amantes e mentiras,
cala a boca e geme de prazer, pureza.

"Andante Passionate"

Desde que nos conhecemos, comendo coelhos nanicos, ele sempre teve imensas dificuldades em regurgitar os pêlos. Precisava de um pouco de entorpecimento para amar. Beber, fumar, engolir pílulas. Qualquer coisa que lhe pudesse ocupar a parte que diz que estamos enganados e cegos. Que plagia chantagens. Nunca lhe foi natural isso de que sempre se fala, isso que insisto em admitir quando alguém toca no assunto, que é preciso, que é urgente, que é a vida que se esvazia senão, que sem não dá.

A paisagem era um coração enregelado e murcho, insistente. Eu entendia aquilo, por dentro e por fora, mas não poderia descrever jamais, não seria justo, seria traição a uma hipocondria fiel. A cidade pedia menos, bem menos, e ele queria muito, só não sabia como pedir, e isso me deixava nervosa, pensando: amigo, você não é poeta. E, afinal, nada ali me lembrava Mário de Andrade, como quando, nunca tendo estado ali, ele me falava em Mário de Andrade sempre que pensava na cidade. Eu sorria, sim, sorria, mesmo que nada me lembrasse Mário de Andrade ali. Pobre Mário, atrás de amor na Praça Roosevelt.

E no fundo estamos, os vivos, sempre atrás de amor. Não encontramos o amor de que precisamos, porque ele é do tamanho de tudo e somos nada, uma carne exposta mal-falada. E porque não achamos tudo, e somos nada, cheguei à inevitável conclusão de que inventávamos um amor incompleto para nos assegurar de um engano consentido. Esse das novelas dubladas fora de sincronia e dos laudos médicos. Mas eu, sendo nada, pelo menos agora sabia exatamente do que precisava. Eu precisava de tudo.

Sempre nos dávamos um longo abraço, sem jeito ele beijava os meus cabelos, tentando afastá-los desastradamente da orelha. Eu dava risadinhas e olhava para ele um pouco de lado, assim de longe, com as mãos na cintura, então mordia os lábios. Eu não tinha olhos de gato, mas pensava que tinha. E muitas vezes ele viu em mim olhos de gato, de tanto eu pensar, disso tenho certeza. Olhos de gato são olhos que fazem você nunca saber. Toda a cena era muito delicada, destoante da paisagem granulada, e nós sabíamos que ela nunca existiria fora dali. Isso o entristeceu de forma surpreendente. A mim me fez contar pequenas mentiras inofensivas.

Eu não havia feito as unhas e foi com vergonha, foi com vergonha e delicadeza que ele desviou os olhos. Sorriu e entrou tirando o casaco – sempre imitava algum personagem de algum filme quando tinha as mãos úmidas. Olhava para as paredes, tentando me fazer pensar que se interessaria por algum objeto da mobília.

Eu lhe disse que ele estava escrevendo feito mulherzinha. Ele ficou constrangido – sei que não posso com gim - mas sempre aqueles dentes separados e aquela espera silenciosa... Então sorriu, virou-se de lado e disse que era porque vinha lendo Clarice Lispector. Eu nunca consegui ler essa mulher. Sempre disse a ele que não podia com ela, que me fazia mal, bruxaria. Ele nunca entendeu aquilo mas, feito bobo, sorria porque lembrava da sua mãe. Talvez quisesse me avisar de algo.

Mas finjamos que tocava Chet Baker. Finjamos que era um encontro marcado depois de dez, quinze, quanto tempo? Movíamos os membros de forma semelhante, corações sincopados, os olhos inflamados procuravam adjetivos.

Resolvemos sair, dar uma volta, respirar o ar poluído. Eu estava gripada, mas disposta, não estava exatamente de bom-humor.

- Antes – eu disse – preciso vestir uma roupa.

Eu já estava perfeitamente arrumada: blusão de lã colorido e polainas. Sempre tive os pés grandes, as pernas finas e a bunda rígida. Ele pensava nisso quando eu fui até o banheiro, tenho certeza que pensava. Pensava com uma exatidão que o assustava e o deixava tenso. Que o fazia folhear livros sem ler e devolvê-los à estante.

Apareci de volta com uma calça jeans apertada e uma espécie de blusa de chita violeta. Dei a blusa na mão dele e perguntei como estava o cheiro.

- Um cheiro terrível – ele disse.

Então eu pedi que ele se virasse e vesti a blusa. Levantei os cabelos – eram os cabelos que mais lhe chamavam atenção em todas as mulheres que já havia conhecido, mas ele nunca me disse nada, e mesmo assim eu sabia. Certamente ele pensava como foi horrível quando eu cortei a franja, enquanto me dava o laço na blusa de chita. Eu me virei e perguntei: “que tal?” Ele disse que o cheiro estava realmente insuportável. Eu disse com certo orgulho que tinha usado a blusa por três dias seguidos. No final desisti da blusa, quando ele disse que não sairia comigo daquele jeito. Estávamos nos divertindo como crianças.

Depois então eu soltei os cabelos e apareci com um camisão de seda preto, desses de gola larga caindo no ombro, que tias velhas sedutoras usam nos velórios precipitados. Vestia também uma outra calça, de veludo: linda calça de veludo. Ele disse que eu estava parecendo a Patti Smith. Eu gostei.

Vesti sapatos de salto azuis, depois sapatos pretos, depois botas texanas, fiquei descalça – as unhas órfãs – então vesti um tênis. Ele esperava vendo fotos de pessoas desconhecidas que tentavam parecer pessoas familiares. Então eu tirei o tênis, tirei a calça de veludo, ele disse: “é linda a calça de veludo”.

Saí do banheiro com uma calça jeans escura, vesti de novo o tênis, usava agora uma camisa branca. Ele me disse para vestir outra vez a calça de veludo: linda calça de veludo.

Eu disse para ele não me pressionar. Abri o armário e ele viu um terno de lã xadrez bem surrado e disse: “você deveria ir com a calça de veludo preta e o terno xadrez, descalça”. Estalei a língua no céu da boca e ele se calou. Ríamos por dentro e por fora estávamos vazios. Vazios não, tímidos. Com quem mais eu poderia conversar sobre calças de veludo e ternos afinal? - eu pensava enquanto descíamos as escadas sem luz.

Subindo pela perimetral. Reparei que por todos os lados havia cemitérios. Cemitérios lotados, ele me disse, onde não cabia mais ninguém.

- E onde enterram os mortos? - eu perguntei.

- Na periferia - ele disse vagamente.

Quem mais eu poderia deixar falar por último assim, deliberadamente? – eu pensei, mas não disse mais nada sobre os cemitérios lotados.

Havia, contudo, uma fileira com bancas de flores para os mortos. Eu lhe contei ofegante que o meu sonho romântico seria que alguém me trouxesse de carro, parasse o carro em fila dupla e fosse a uma dessas floriculturas me comprar flores. Falei isso de olhos baixos, vendada. Andávamos como velhos que já viram demais, entregues, os braços dados como na festa junina, eu pensei. Mas não disse mais nada sobre as flores da morte, porque nós dois tínhamos ainda muito para procurar juntos. Sim, juntos! Então pela primeira vez na noite – quem será a vagabunda, meu deus, quem? – deixei de sorrir e seguimos em silêncio.