3.10.07

"Um dia pintarei meu quadro de um azul que nunca se viu na Terra"

*adianto que o texto é antigo, e fala de um tempo morto, vivo dentro de mim, em algum lugar desconhecido, que procuro sem saber como.

Lembro que vi todos bêbados e santos em cima de uma pedra-pouso-para-discos-voadores-terrestres ali na Urca. Olhei pro Cris e falei: “Esses babacas estão todos doidões... Olha ali, parece uma seita satânica”. Ele olhou pra mim, estávamos na calçada: “Deixa que a maré tá subindo e vai varrer tudo dali”. O fato de a maré subir e estar sempre subindo, descendo quando você quer que suba, o inverso também. Nunca vai nos respeitar, a maré. Não depende de nós. E o que vi naquela tela, ao passo que dependia de tudo, por vezes senti que escapava do Nós, do Eu, do Meu, que seja do Nosso, e passava a ser independente, não barato nem inconseqüente, apenas independente, como a maré.
Mas todos na pedra de braços cruzados, pulando de uma pedra à outra, rindo, se olhando. A água dando seus últimos avisos. No fundo, um senhor de bengala, um negro pé-de-cacau, dobrava a cara segurando as calças, boca suja de areia e dobras sujas de merda de baratinhas do mar, dormia profundamente o velho, bainhas dobradas, foi até o meio do caminho, acordado pelo fuzuê do trompete com as exaltações incontidas quando se tem tudo de que se precisa muito perto do nariz. Então ficamos meio abobados e beatíficos. Como os anjos, como os santos, como os assassinos. E vem a maré... E o velho do candomblé... Olhei pra ele bem de perto. Saiu de dentro do chão, acendeu gás, lampião, a dor. Olhou em volta e observou o tom de comemoração, cansaço, música rápida, fumo em guardanapos e leitura de Kafka, na base da risada. Viu tudo, piscou os olhos, acendeu sua luz, sua única luz, na mesa de vigas entortadas pelo efeito da corrosão do tempo que cisma em se exibir derrubando coisas no limbo.
“Ei, Cris, vou sair fora daqui... Aquele velho macumbeiro ali tá me deixando tenso”. Ele riu, mas ficou tenso também. E rimos então. Mas eu podia ficar ali em cima sem problemas. Podia ver toda a verdade lá de cima. Olhava pra baixo e via o processo da morte, não como conclusão, talvez um pouco de sorte e, claro, idéias de grande porte e dúvidas ainda maiores.
Filhos da puta, pensei comigo mesmo sorrindo. Agarraram o acaso também e agora eu não posso dizer mais nada.
Tudo aquilo, coisas da sinceridade, meu alimento, minha alfafa: o riso impostado do Alvarenga, suas canções e seus olhos espremidos, sua vontade de voar quando dança, suas mãos se mexendo no ar quando diz a verdade que passa por perto e quando endoida sem parecer besta, quando quer agarrar tudo com seus grandes braços desajeitados e cheios de coisas e vontades que podem me salvar.
As conversas de ombros encolhidos sobre o abraço do mundo que o Cris me dá sempre, o olhar pro outro e sentir uma compaixão solidária, solitária sendo quase conjunta, mas boa, confusa, porque maduro é morte e a solidão nesse caso seria da compreensão de que temos um ao outro.
A leveza do olhar e a profundidade de qualquer chegada de olho ou a frase calma de qualquer mão no ombro do João Duarte, meu inverso igual, seu jeito de ser que, vendo assim, faz babacas como eu duvidarem se aquilo realmente pode ser: minha estúpida limitação, tanta merda não podendo que pode.
E aquele sopro cansado, coado, procurando, desesperado, onde está Chet Baker, ajeitando os óculos, sacudindo a cabeça. Sofro como ele, onde está ele? O sopro cansado na toada fugaz da batida de veias e pulsos no galope incontido da música-maré. Um Maquiavel de boinas com hastes do tipo Dave Brubeck que jazz dentro de si próprio e quer entender também porque tanto ódio, tantas convenções desajustadas, tanto pavor quando tudo é apenas música. Mas dentro dos olhos...
Ah! Dentro dos olhos está o pântano submerso. E dentro do pântano estão ostras nojentas. E dentro das ostras nojentas, gosmas pegajosas. E, por fim, a PÉROLA INTACTA. Estamos juntos ali. Uma pena que amanheça todo dia. E uma pena que eu não saiba falar do amor.
Na pedra agora um discurso:
“Sem vocês isso jamais estaria acontecendo...”
Eu agora estou de volta à pedra. Existem momentos que viram quadros. Se eu pudesse pintá-los seriam os mais lindos quadros. De um azul que não teria fim, que a Terra não conhece, e vocês se espantariam com o meu azul sem fim. Dane-se a arte! Que importa o que já foi pintado? Precisamos viver; e já! Precisamos sinceramente precisar viver já. Como nenhum livro explicará.
Eu pintaria um quadro de vocês, bros, pretty bros, um quadro de um abraço com meias, um quadro de cinzas nos cabelos, um quadro de esculhambação, de dancinhas-Prince-abaitoladas, dos melhores choros, das melhores bundas, dos grandes abandonos compartilhados, dos maiores sonhos, do que não pudemos agarrar nem mesmo tentar explicar, daquilo que passou e deixou um grande peido fedorento e silencioso, tudo o que se misture com as grandes infantilidades e com os brindes de uísques velhos e uísques novos e uísques bons e ruins e conhaques e vazou e lambidas de dedo e sorrisos de meia boca e caras de sacana e todas as palhaçadas e todos os momentos vivos que me possibilitaram. Porque é impossível ter que sentir isso e falar disso ao mesmo tempo sem chorar, porque o choro é sempre pelo impossível, que agora, graças a vocês, acaricia minha cabeça todas as noites antes de dormir. E então não durmo mais, então vejo o dia voltar em azuis violáceos, tantas tonalidades, Álvaro!, são tantas as tonalidades!, são tantas as possibilidades de erros e acertos!, temos tudo!, tudo o que pudermos misturar com o caldo da emoção!
Temos tudo porque podemos sentir a brisa avisar aos marujos: “homens ao mar!”, porque temos o instante, a vontade de voar, apesar dos passa-pernas convencionais, pois nos faltam asas. Mas digo: Na-na... Vocês não podem mais me agarrar! Agora eu tenho o mundo, ou o que dele me convém. Agora eu sou o abraço que tentei dar mas os braços não conseguiam se esticar tanto quanto agora o pranto que me enche os olhos tenta saltar para longe, onde a vida era o mistério e a morte chegava sem avisar, porque a vida é o máximo que a morte pode me dar.

Vocês, seus miseráveis sonhadores e adoráveis, vocês podem chupar o universo de canudinho. Nunca pensem que não. E como que eu posso falar de outra coisa que não seja o amor?

Um comentário:

Anônimo disse...

Sim, eu tb me lembro desta noite, deste texto..., tempo morto-vivo. Como vai? O que tem feito? Dê notícias! Um grande abraço do João.