Querido Jack,
Hoje, quando andava pela beira da praia e vi uma gaivota se afogar, quer dizer, vi a gaivota mergulhar na água com vigor, mas não vi a gaivota voltar, eu pensei: “essa gaivota é como Jack Kerouac”.
E agora sua voz se repete na minha cabeça, se repete dizendo que nada ou ninguém poderá dizer nada sobre os trapos da nossa velhice. Por que justo hoje eu teria pensado em ti, meu velho amigo, pão pobre amassado, minha impossibilidade?
Na verdade, somos todos em algum momento deuses, quero dizer, todos somos deuses plenos, mas vez em quando reparamos nisso, em lampejos, lá fora as pessoas nas ruas andando do mesmo jeito, os mesmos semblantes, com questões urgentes e assassinas, deslizando sobre a navalha de um planeta aos pigarros, todas pessoas particulares num saco de abandonos, Kerouac, porque na miséria reside a peculiaridade soberana.
Mas essa carta não é para te incomodar com os meus lamentos, se nem bem somos tão amigos ainda, se ambos somos tímidos, porque falamos demais. Mas seríamos parecidos? Veja você: de uma pedra para a outra, enlouquecendo em frente a uma vela, escrevendo de 7 a 8 horas por dia, rindo da própria loucura, ainda criança dizendo: “eles riem de mim porque eu quero ser escritor”.
Agora vejamos eu: vergonha acima de tudo, mentira; vergonha, mentira, hesitação. Trinta exemplares de um livro de contos inacabados, dos quais me resta um, e pelos quais pouco me dediquei. Um pai vivo maravilhoso e todas as portas fechadas, emperradas, precisando óleo. Todos os sorrisos dependurados, abismos monstruosos, mas uma cama confortável, sem sonhos, enlouquecer e bater em disparada a cada vez mais atônita, mas para que lugar?
Mas essa carta não é também uma procura, Kerouac, enquanto ouço sua voz suave ainda falando para mim sobre o mito de uma tarde onde as pessoas riam de verdade e tudo parecia ter entrado nos eixos novamente, quando você podia andar do balcão do bar até a mesa e ter a boa sensação de que te observavam com cuidado, mas, ah, Jack, meu caro, não era nada disso que eu precisava te dizer...
Queria te dizer coisas lindas, coisas sobre âncoras nos mares africanos e olhos brilhantes sujos de fuligem. Queria dizer agora assim da sua forma mas sem te imitar que a forma nada mais é que nossa alma e que portanto o pensamento como reflexo da alma – assim como o corpo – não deve ser interrompido jamais. Deve seguir o fluxo que você observou enquanto olhava a enchente que enregelou os corações de Lowell e arruinou os negócios de seu pai. Porque você me ensinou que o fluxo verdadeiro corre sempre na direção de uma queda vertiginosa inadmissível e atraente, e o que não foi sua vida, Jack Kerouac?
E quem afinal eram aqueles hippies vagabundos exigindo de você uma bandeira? O que significa um passo depois do outro, Kerouac?
Movia-se como um escritor se deve mover. E não adianta eu tentar dizer que jeito de se mover é esse. Você viveu como um escritor, lavando frangos em frigoríficos, lavando pratos em São Francisco, escotilhas em longitudes sórdidas. Mas acima de tudo você escreveu. Quantas vezes o vôo solo não te causou uma estranha sensação de solidão, como se houvesse apenas o sol e nós fôssemos também o sol, agora, indefinidamente, perto de sermos postos em chamas, perto de nos tornarmos outra vez o magma, a localidade perplexa.
Mas e quanto ao ritmo, Kerouac, o que dizer sobre o ritmo? Porque você foi meu trigo e a primeira música real que escutei por horas. E na verdade pouco sabia do que você estava falando. Porque você falava de tudo ao mesmo tempo, da beleza, da pobreza, da tristeza, da anarquia, da triste beleza da pobre anarquia, enfim, você não dizia nada, você despejava seu palavrório louco que era ao mesmo tempo todas as coisas juntas e eu de repente podia imaginar o cais de Tanger, ou ver um lagarto verde-limão no teto de uma casa sem teto. Era pura música, eu lia estalando os dedos, e pensava em casas de chá na Antuérpia, minas na Rússia, bares enfumaçados, a silhueta de Monk, assassinatos no Central Park.
Isso não se faz, Kerouac, assassinar assim a mente e as possibilidades de um garoto. Mas essa carta também não era uma cobrança...
O que foi feito dos teus ossos tão firmes, meu camarada? Quero saber o que você acharia que restou para nós, os alucinados noturnos, os que sonham e não tem álibis, os assustados serenos, o que você me diria sobre os que se matam por ódio, com frases de paz?
Jack Kerouac, meu primeiro autor lido, gostaria que, de onde e sob a forma que estiver, você não pensasse nunca que, mesmo sem talento, eu iria manchar a sua imagem com homenagens difamatórias. O que eu quero de ti é sério, e não cabe a mais ninguém, mesmo que permaneça em silêncio.
O que eu quero saber é o que fazer com o riso que dobrou a esquina, com os dentes sobressalentes, o que fazer com as esquinas de cada sorriso, o que fazer com uma pessoa que, sem lembrar, pensa em sorrisos sem faces? Mas existem coisas acontecendo. Existem coisas acontecendo e todo mundo fala e discute as coisas assim como discutirão tantas outras coisas diferentes, sempre a mesma discussão. Existem coisas acontecendo como o espancamento de uma babá por jovens idiotas com sorte. Existem coisas e eu preciso opinar sobre elas, escrever sobre elas, fazer alguma coisa sobre essas coisas, para me livrar delas. E não há como se livrar das coisas acontecendo porque elas estão acontecendo agora e em toda parte, como se fosse há milênios.
Como escapar dessa vez, meu jovem escritor irrequieto? Como poder dizer “caguei” quando nos tornamos a merda? Quando não mais Gás Light e leituras de poesia zen? O que fazer quando o crime se torna andar na rua despreocupado?
Existe, sim, algo para fazer. Mas pensando no que de fato eu queria te dizer, vejo como liberar as rédeas e deixar fluir acaba se tornando carne para ameba. Eu vejo seus olhos estranhamente em uma parede branca, eu ouço palmas e gargalhadas, escuto Stravinsky e John Coltrane conversando ao pé do seu ouvido, sinto os trovões e sei que eles não passam, no fim, de carne para ameba.
E agora eu finalmente me lembrei porque pensei em ti, meu velho desconhecido. Porque estou agora cometendo um erro, mais um erro de amor, mais um ato incompreendido, porque estou agora sozinho e pálido, não exatamente desnutrido, mas temente a deus, porque enfim pensei outra vez em deus, mas não por deus pensei em ti, pensei em ti porque estou numa casa que não é minha, alimentando um gato que não é meu – já que os gatos não são de ninguém – pedi cerveja no bar da esquina e na falta de carinho estou ouvindo Stravinsky, o que não deixa de ser uma boa pedida para quem não tem nada, e nem mesmo sabe conjugar o verbo ter. Mas acho que, assim como você um dia, estou mentindo porque, no fundo, pensei em ti porque lembrei de uma guria.
Hoje, quando andava pela beira da praia e vi uma gaivota se afogar, quer dizer, vi a gaivota mergulhar na água com vigor, mas não vi a gaivota voltar, eu pensei: “essa gaivota é como Jack Kerouac”.
E agora sua voz se repete na minha cabeça, se repete dizendo que nada ou ninguém poderá dizer nada sobre os trapos da nossa velhice. Por que justo hoje eu teria pensado em ti, meu velho amigo, pão pobre amassado, minha impossibilidade?
Na verdade, somos todos em algum momento deuses, quero dizer, todos somos deuses plenos, mas vez em quando reparamos nisso, em lampejos, lá fora as pessoas nas ruas andando do mesmo jeito, os mesmos semblantes, com questões urgentes e assassinas, deslizando sobre a navalha de um planeta aos pigarros, todas pessoas particulares num saco de abandonos, Kerouac, porque na miséria reside a peculiaridade soberana.
Mas essa carta não é para te incomodar com os meus lamentos, se nem bem somos tão amigos ainda, se ambos somos tímidos, porque falamos demais. Mas seríamos parecidos? Veja você: de uma pedra para a outra, enlouquecendo em frente a uma vela, escrevendo de 7 a 8 horas por dia, rindo da própria loucura, ainda criança dizendo: “eles riem de mim porque eu quero ser escritor”.
Agora vejamos eu: vergonha acima de tudo, mentira; vergonha, mentira, hesitação. Trinta exemplares de um livro de contos inacabados, dos quais me resta um, e pelos quais pouco me dediquei. Um pai vivo maravilhoso e todas as portas fechadas, emperradas, precisando óleo. Todos os sorrisos dependurados, abismos monstruosos, mas uma cama confortável, sem sonhos, enlouquecer e bater em disparada a cada vez mais atônita, mas para que lugar?
Mas essa carta não é também uma procura, Kerouac, enquanto ouço sua voz suave ainda falando para mim sobre o mito de uma tarde onde as pessoas riam de verdade e tudo parecia ter entrado nos eixos novamente, quando você podia andar do balcão do bar até a mesa e ter a boa sensação de que te observavam com cuidado, mas, ah, Jack, meu caro, não era nada disso que eu precisava te dizer...
Queria te dizer coisas lindas, coisas sobre âncoras nos mares africanos e olhos brilhantes sujos de fuligem. Queria dizer agora assim da sua forma mas sem te imitar que a forma nada mais é que nossa alma e que portanto o pensamento como reflexo da alma – assim como o corpo – não deve ser interrompido jamais. Deve seguir o fluxo que você observou enquanto olhava a enchente que enregelou os corações de Lowell e arruinou os negócios de seu pai. Porque você me ensinou que o fluxo verdadeiro corre sempre na direção de uma queda vertiginosa inadmissível e atraente, e o que não foi sua vida, Jack Kerouac?
E quem afinal eram aqueles hippies vagabundos exigindo de você uma bandeira? O que significa um passo depois do outro, Kerouac?
Movia-se como um escritor se deve mover. E não adianta eu tentar dizer que jeito de se mover é esse. Você viveu como um escritor, lavando frangos em frigoríficos, lavando pratos em São Francisco, escotilhas em longitudes sórdidas. Mas acima de tudo você escreveu. Quantas vezes o vôo solo não te causou uma estranha sensação de solidão, como se houvesse apenas o sol e nós fôssemos também o sol, agora, indefinidamente, perto de sermos postos em chamas, perto de nos tornarmos outra vez o magma, a localidade perplexa.
Mas e quanto ao ritmo, Kerouac, o que dizer sobre o ritmo? Porque você foi meu trigo e a primeira música real que escutei por horas. E na verdade pouco sabia do que você estava falando. Porque você falava de tudo ao mesmo tempo, da beleza, da pobreza, da tristeza, da anarquia, da triste beleza da pobre anarquia, enfim, você não dizia nada, você despejava seu palavrório louco que era ao mesmo tempo todas as coisas juntas e eu de repente podia imaginar o cais de Tanger, ou ver um lagarto verde-limão no teto de uma casa sem teto. Era pura música, eu lia estalando os dedos, e pensava em casas de chá na Antuérpia, minas na Rússia, bares enfumaçados, a silhueta de Monk, assassinatos no Central Park.
Isso não se faz, Kerouac, assassinar assim a mente e as possibilidades de um garoto. Mas essa carta também não era uma cobrança...
O que foi feito dos teus ossos tão firmes, meu camarada? Quero saber o que você acharia que restou para nós, os alucinados noturnos, os que sonham e não tem álibis, os assustados serenos, o que você me diria sobre os que se matam por ódio, com frases de paz?
Jack Kerouac, meu primeiro autor lido, gostaria que, de onde e sob a forma que estiver, você não pensasse nunca que, mesmo sem talento, eu iria manchar a sua imagem com homenagens difamatórias. O que eu quero de ti é sério, e não cabe a mais ninguém, mesmo que permaneça em silêncio.
O que eu quero saber é o que fazer com o riso que dobrou a esquina, com os dentes sobressalentes, o que fazer com as esquinas de cada sorriso, o que fazer com uma pessoa que, sem lembrar, pensa em sorrisos sem faces? Mas existem coisas acontecendo. Existem coisas acontecendo e todo mundo fala e discute as coisas assim como discutirão tantas outras coisas diferentes, sempre a mesma discussão. Existem coisas acontecendo como o espancamento de uma babá por jovens idiotas com sorte. Existem coisas e eu preciso opinar sobre elas, escrever sobre elas, fazer alguma coisa sobre essas coisas, para me livrar delas. E não há como se livrar das coisas acontecendo porque elas estão acontecendo agora e em toda parte, como se fosse há milênios.
Como escapar dessa vez, meu jovem escritor irrequieto? Como poder dizer “caguei” quando nos tornamos a merda? Quando não mais Gás Light e leituras de poesia zen? O que fazer quando o crime se torna andar na rua despreocupado?
Existe, sim, algo para fazer. Mas pensando no que de fato eu queria te dizer, vejo como liberar as rédeas e deixar fluir acaba se tornando carne para ameba. Eu vejo seus olhos estranhamente em uma parede branca, eu ouço palmas e gargalhadas, escuto Stravinsky e John Coltrane conversando ao pé do seu ouvido, sinto os trovões e sei que eles não passam, no fim, de carne para ameba.
E agora eu finalmente me lembrei porque pensei em ti, meu velho desconhecido. Porque estou agora cometendo um erro, mais um erro de amor, mais um ato incompreendido, porque estou agora sozinho e pálido, não exatamente desnutrido, mas temente a deus, porque enfim pensei outra vez em deus, mas não por deus pensei em ti, pensei em ti porque estou numa casa que não é minha, alimentando um gato que não é meu – já que os gatos não são de ninguém – pedi cerveja no bar da esquina e na falta de carinho estou ouvindo Stravinsky, o que não deixa de ser uma boa pedida para quem não tem nada, e nem mesmo sabe conjugar o verbo ter. Mas acho que, assim como você um dia, estou mentindo porque, no fundo, pensei em ti porque lembrei de uma guria.
Mas por que, Jack? Por que você não parou e se tornou um velho gordo e faceiro? Porque sua questão era outra e veja só no que deu. Eu que te amo e te li um bocado não tenho bolas o suficiente para admitir o erro da paixão, não tenho crises tão graves a ponto de me manter sóbrio, mais um fígado de vidro flagelado e uma leve hipersensibilidade no cólon do intestino. Entendo tua lira e me arrepio, sei que é preciso navegar apesar de tudo, e sinto que estamos tão longe mas tão juntos, porque sei que a solidão tem olhos sorridentes, mas no fundo temo porque a mesma solidão, quando abre a boca, mostra seus dentes podres que, apesar do sorriso de olhos, não podemos simplesmente dizer “é a vida”. Você me ensinou que não se diz “é a vida”. Você procurou a lápide até encontrá-la. Você jogou a lápide fora. Ajude-me por deus a encontrá-la outra vez.
Leonardo Marona
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2007
Um comentário:
é... dessa tela negra, em luto, sempre surge uma incrível malha de letras brancas... e por mais que eu não veja o vermelho, que estranho... sempre a vejo sangrar... e quanto mais sangue e paixão vejo surgir dela, mais saudade sinto de ti. há quanto tempo não vinha, há quanto tempo não me emocionava assim...
obrigada Leo, obrigada por me despertar a alma nessa madrugada. um beijo, tatiana
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