14.1.07

“Mateus 27:46”

Poderiam ser fogos e festins das festas do fim de ano. Poderia ser mais uma cerveja e poderiam ser muitas opiniões bocejadas por almas aflitas de pernas cruzadas superestimando a fumaça dos cigarros como extensão de almas piratas, opiniões nas quais se baseavam apenas para a conformação do fato de que poderiam até saber das coisas, mas simplesmente não era sempre possível acreditar nelas. Mas havia sim um estalo, algo que poderia se quebrar, uma linha tênue de serragem contra o sol como num filme de caubói. Mas era noite, era o som de algo se partindo por dentro, era um estalo de agonia. Eram peles sobre carnes sobre bactérias sobre ossos, mas era também um não reconhecimento e talvez três bons amigos complacentes, quando este som, quando este constrangimento sonoro fez um deles pigarrear, como quando um se sente mal por ter sido interrompido bruscamente ao discorrer sobre o imperativo categórico da extinta civilização alemã.

- Socorro, socorro! Levei um tiro no coração!

Entra um homem de não mais de trinta anos, mas difícil saber quantos anos tinha cada ano seu. No bar todos gritavam por dentro, estáticos, impávidos, latentes. Os três amigos parados, em pé, como militares aspirantes diante de uma prostituta búlgara. Uma mulher com rolinhos no cabelo, alguns soltos, surge com labaredas nos olhos, sobrancelhas retorcidas.

- Não deixem ele entrar! Tirem esse homem daqui!

O homem de pé, mas calmo, caindo. Cai e levanta, suado, e vomita sangue incontrolavelmente: ninguém se aproxima. Os três amigos, que há pouco falavam sobre mundos místicos, permanecem congelados. O homem se apóia no balcão, escorrega sobre a pasta de sangue carnoso e a mulher com rolinhos na cabeça se aproxima e lhe aplica vassouradas na região lombar. De repente um berro, muito agudo e desafinado, esganiçado, e então a mulher se afasta.

- Seus idiotas, vocês não fazem nada! Passa! Já pra trás do balcão!

Os três filósofos correm para trás do balcão. A mulher com rolinhos na cabeça ensopada de sangue coalhado. Sangue e coisas que parecem pedaços de sangue. A mulher entra em estado de choque e cai no chão, desmaiada. Os pequenos Kierkegaards então correm na direção da mulher e tentam não se sujar de sangue.

O homem em frente, também no chão, escorado no balcão, anuncia engasgos úmidos e tenta desesperadamente se levantar. Mantém os braços abertos e os olhos vidrados como se vissem algo monstruoso se aproximar, algo monstruoso e gigantesco e libertador, e do lado esquerdo do seu peito, pouco abaixo do ombro, ribomba uma cachoeira pulsante de sangue que segue em ritmo sincopado, diminuindo e aumentando o fluxo.

O homem caído então sobre os joelhos diz quase sem som, olhando para três reis magos indiferentes, também ajoelhados diante da mulher com rolinhos nos cabelos:

- Levei um tiro no coração... por favor... medo... tenho medo... me dá um abraço...

Há também uma cachoeira de sangue escoando pelas costas: o tiro lhe havia estraçalhado o ombro. Todos se afastam horrorizados, mas limpos. Um dos profetas corre para o banheiro com engulhos. A vida retorna ao seu estado de mistério. Natureza morta volta a reinar.

Todos fazem o sinal da cruz e vão para suas casas, abalados, famintos e cheios de assunto. Pouco depois, dois homens negros e sujos mal-vestidos de preto, galhofeiros, aparecem e arrastam o corpo murcho do homem que havia levado um tiro e morrido sem ganhar um abraço. E os que permanecem, tendo negado, mesmo sabendo, continuam com medo de abraçar.

4 comentários:

Anônimo disse...

Medo de abraçar. Isso é muito triste. E eu tenho isso o tempo todo.

Anônimo disse...

Estou sem o tempo merecido pra ler você... mas com muitas saudades, principalmente depois da Ju ficar me lembrando de você o dia todo... ehehehehe....

Obrigada pela foto. Ficou Linda!

Volto mais tarde aqui. Besos.

natércia pontes disse...

vi tudo em preto e branco.
saudades de vc

quase liguei ontem de madrugada
mas nao sei mais com quem vc anda
o que vc faz

baggio

Anônimo disse...

É foda. O pior é que quase sempre a "natureza morta volta a reinar".

E o mal rmédio é "Todos fazem o sinal da cruz e vão para suas casas, abalados, famintos e cheios de assunto."
Pungente, triste, faz lembrar algo de o "Beijo no asfalto"