20.11.06

"enquanto Juca lia Fausto Wolff no jornal"

Juca e Dato numa manhã de frio, enroscados debaixo de cobertas já não tão limpas, no chão da sala com cozinha embutida. As mãos vermelhas e quebradiças refugiadas em xícaras com café forte e amargo. A chuva estala as janelas e é tão difícil se ver livre da poeira quanto do passado. Os jornais estão espalhados pela sala, com marcas antigas de copos de vinho e algum amor perdido em noites de sono. Dato usa apenas duas meias de lã acinzentadas e uma cueca samba-canção esgarçada. Está fora de forma e ostenta mamas salientes, mas ainda tem belas cochas e se orgulha delas. Juca corta as unhas do pé numa bacia e fuma um cigarro ao mesmo tempo. Com os cabelos presos em coque por uma caneta de cinqüenta centavos, bate as cinzas no tapete isfahan “do tipo polaco” e funga com o nariz entupido por causa da alergia ao pelo do gato. O jornal dobrado no chão.
"Outro dia me chamaram de reacionária porque eu disse que era bom a gente abrir o olho com a Amazônia, antes que ela vire um parque aquático americano", diz Juca olhando para o jornal, cortando as unhas e tragando sem parar.

Dato apenas olha e não diz nada. Odeia cigarros e quem os fuma, com exceção da Juca. Em alguns momentos. Não neste. Depois estica a coluna com os braços para cima. Se sente feliz porque ainda consegue ver as linhas das costelas através da pele. Relaxa novamente. Então olha para suas mamas enrugadas: o tempo não dá trégua a qualquer tipo de intenção beatificante.

No rádio, a mulher tem uma voz nasalada e levemente devassa. Um pouco fora de sintonia, diz:

A seguir, concerto número 1 para piano de Brahms, pela Orquestra Filarmônica de Israel, com regência de Zubin Mehta e Radu Lupu ao piano.

“Radu Lupu, quem?” – pergunta Juca esticando o jornal.

“Um solista...” – diz Dato calçando um pé do sapato.

“Sim, mas um pianista havaiano?”

“Como você sabe?”

“Pelo nome... Lupu... Deve ser nativo.”

“É romeno...”

“Eu achava que Lupu era doença crônica...”

“Lupus...”

“Pois é...”

“Ataca principalmente mulheres brancas.”

“O que causa?”

“Inflamação no corpo, nas juntas, no couro cabeludo... Uma doença africana.”

“Boa forma de vingança.”

Nenhum comentário.

“Mas Lupus não é também uma marca de meia?” – diz Juca lixando o calcanhar.

“Lupo...” – diz Dato.

“Pois é...”

Então Dato levanta e mistura mais conhaque no seu café. Cueca branca de braguilha aberta. Cabelo amassado na cabeça desproporcional. O rosto vincado por dias e dias de dobras de travesseiro. Barba demais, o pescoço tomado. Meias cinzas de algodão.

“Você pensa que é quem, Samuel Spade?” – diz Juca recolhendo unhas do chão.

“Só se você fosse uma daquelas putas dondocas de piteira na boca” – diz Dato calçando outro sapato.

“E digamos que eu seja, ou digamos que eu possa ser uma dondoca puta...”

“Então neste caso, minha querida, eu sou, sim, o Samuel Spade.”
Se beijam no sofá. A um incomoda o mau hálito do outro. Não reclamam mas, em compensação, também não fecham os olhos. A chuva aplaude do lado de fora. As folhas nas árvores se beijam, riem e choram. A gravação de Brahms é tão antiga que faz o mundo inteiro chiar na arranhadura da vitrola feita de madeira e ouro forjado. É quarta-feira, dia da independência, mas parece domingo e todos estão presos de alguma forma, a maioria sem saber. Dato ama Juca que ama Dato que ouve há anos que Juca o ama e diz há anos que ama Juca e pensa há anos que se a ama não deveria precisar dizer tanto que ama Juca. Mas às vezes são ditas tantas coisas que não sobra tempo para o amor. E mesmo no céu não há fogos de artifício em lugar nenhum.