23.9.06

"Plantação de Cenouras"

Talvez fosse um poeta voltando a pé para casa, passando pela cidade baixa, cogitando entrar num cinema de freqüência quase exclusivamente homossexual, talvez porque lhe atraísse o muro de tijolos, talvez porque estivesse perto de enlouquecer, afinal, fora o cinema heterodoxo, o filme era de Pedro Almodóvar.

Em sendo um poeta libertino, havia gastado a tarde enterrado numa poltrona vitoriana empoeirada, no fundo de um sebo, forjando a cigarrilha e lendo uma antologia de Bertolt Brecht aos soluços. A princípio se sentiu o maioral por isso – olhos espremidos e mão no queixo, suando cálices fictícios de absinto – mas logo depois se sentiu como um comedor de estrume, porque Brecht era tão atual e corajoso e comprometido com o mundo a sua volta... E o que talvez fosse um poeta voltando a pé para casa talvez não fosse mais um poeta. Enfraquecido pela própria peste, deslizou por sua sombra entre traças e pensou em que momento poderia ter se equivocado tão irreversivelmente. Mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão quanto a isso.

Ao sair da livraria, depois de horas procurando um começo para o texto que tinha na cabeça, envergonhado por não ter como comprar o que gostaria, agradeceu ao vendedor de tênis vermelho surrado, camisa dos Beatles, costeletas e voz fina, que lhe disse: “Não por isso”.

Aquilo esclarecia a situação: não havia nada de seu que o poeta ainda pudesse ter.

Fazia calor finalmente em Porto Alegre. Depois de quase dois meses de perambulação desordenada por dentro dos seus próprios botões: os cascos já meio gastos não sabiam diferenciar norte de sul. Mas, resquício de bom-senso, o poeta resolveu abortar a idéia de assistir ao filme e reparou que havia um boteco logo ali ao lado do cinema. Um daqueles que ficam por trás de grades enferrujadas e rostos coalhados pelo esquecimento.

Então ele entrou e sentou olhando insistentemente para os lados. Nenhum motivo especial para isso, apenas marcando território.

O ambiente do bar era desolador, foi o que mais lhe atraiu. Era o tipo de lugar que parece te olhar, depois de se queimar com o café, e pedir: “por favor, estimado senhor, sei que não sou muito, mas o lugar é ao menos bastante arejado e o preço é justo, portanto sente-se, por caridade”. Era como o próprio poeta diante das portas, sempre pedindo com vergonha.

Por identificação disse a si mesmo, olhando o reboco descolado no teto: “tudo bem, meu chapa, entendo a sua situação... o tempo não tem sido razoável como nenhum de nós e, afinal, vou te dar essa colher de chá”.

- Com licença, tu disseste alguma coisa?

E com a segunda pessoa do singular veio uma garçonete de unhas vermelhas descascadas e um pano de prato encardido sobre o ombro. Era loira. Sim, nenhuma sombra de dúvida, nenhuma gota de tinta, penugem sutil sobre os antebraços e, de resto, toda sobrancelha e cílios. Vinha com certeza da fronteira uruguaia. Era loira toda a vida, e por isso o poeta tinha vindo de tão longe: para ter sua existência redimida por uma loira assim. Uma penca de filhos com cocurutos platinados, sardas para todos os lados, mãos calosas de colher raízes, um vasto campo e o jazz libertino dos curupiras. Ela era a carne do seu sonho.

“Vamos lá, seu idiota”, disse o poeta mentalmente, “diga algo inteligente, mostre a ela o seu potencial, tire da mochila as cartas a um jovem poeta, de Rilke, chame a atenção dela com algum sotaque inesperado, não pigarreie, pelo amor de deus não gagueje, dê a ela aquele sorriso premeditado de meia-boca, faça como Philip Marlowe, mas se mexa logo!”

- Não, nada – foi o que ele disse.

- Mas tu não queres nada? Nada de beber, nada de comer?

- Ah, sim... é claro... que cabeça... o calor... quente demais hoje, não?

Ela apenas ficou olhando: olhos dardos de fogo, cílios ponteiros de relógio.

- Claro, desculpe – ele disse. – Uma cerveja então, por gentileza.

Ela virou as costas com um sorrisinho na boca de como quem pensa: mais um belo imbecil.

Não havia como culpá-la. Com um mês e meio na cidade ele pouco falava, e era como se tivesse desaprendido os mais simples movimentos do convívio social. Estava sentado numa mesa dessas de beira de piscina, com cadeiras vermelhas de plástico duro e marcas de cigarro. Ao seu lado esquerdo havia um sujeito muito magro com os cabelos desgrenhados na altura das orelhas muito amplas, pescoço como o de um jabuti e um aspecto enlouquecido. Quatro garrafas de cerveja vazias e uma a caminho sobre a mesa. Ria sozinho e falava consigo mesmo coisas sem sentido, como: “esta é uma canção portuguesa: A Sedução da Boneca de Pano”. Mexia sem parar as pernas, a cabeça de um lado para o outro, como se um esquilo tivesse entrado em suas calças. “Pobre homem”, pensou o poeta, “provavelmente abandonado por uma vigarista ordinária a quem deu uma aliança e um bicho de pelúcia, e ela o largou sozinho, só com uma muda de roupas, e se mandou para sempre com um caminhoneiro de unhas sujas. Acontece aos montes, todos os dias. Pobre homem, como tantos homens, como todos os dias, aos montes, todos mudos, pois ninguém agüenta enxugar sua melancolia, porque é a melancolia de todo o mundo”.

A cerveja chegou sem que o poeta pudesse olhar para o rosto da menina loira – mas reparou que tinha aparelho nos dentes pelo reflexo do sol poente na prata – e essa aparente discrição até pode tê-la agradado, mas a ele agoniava profundamente. Ela deu meia-volta e ele ficou estatelado na cadeira. Os solados emborrachados das sapatilhas dela provocavam gritos de terror no chão envernizado. O poeta então olhou o reflexo do seu próprio rosto na garrafa de vidro marrom: também tinha o aspecto enlouquecido de um sujeito abandonado. Bebeu o primeiro copo mais rápido que de costume e então começou a chorar sem chamar atenção.

Do outro lado, quase colado ao poeta, havia um casal de meninas, uma gorda de camisa larga e outra magra de membros graúdos, cabelos postiços esticados, roupas sugestivas, do tipo que você não confiaria nem mesmo a chave da sua própria prisão. Junto a elas estava um rapaz de corpo avantajado mas arruinado, sobrancelha rasgada, que parecia sofrer de alguma negligência cromossômica, pois não conseguia em hipótese alguma fechar a boca. Eles falavam sem parar sobre a inutilidade de seus empregos num banco e numa loja de rações – o poeta não soube distinguir quem trabalhava onde. Ao mesmo tempo planejavam um lugar onde beber assim que saíssem dali.

Pouco atrás do louco abandonado pela vigarista, que partia para sua sexta garrafa em auto-afirmação psicótica, havia um sujeitinho miúdo de nariz desmedido, como uma caricatura assinada por um bêbado sem talento algum para o pincel. Camisa de botão bem frouxa e tênis esfolado, na terceira garrafa. Bebia sozinho e lia o jornal, alheio a tudo. Parecia preparado para a luta, porque não dava a mínima, e isso é estar preparado. Depois largou o jornal e abriu um livro velho, meio úmido e amarelado, e começou a ler. O cheiro que o livro trouxe entranhado em suas páginas era detestável, de causar náuseas, mas náuseas iam bem com clima do momento. Lima Barreto, Alvarez de Azevedo, Fagundes Varela... não havia como saber ao certo. Que sujeito! Então se virou para a garçonete loira e pediu uma cerveja: completamente gago, babava sobre as palavras na mesa, olho de vidro. Mas, de uma maneira ou de outra, era bom estar ali.

O poeta então resolveu gastar todo o seu dinheiro em bebida, depois de perceber que Lili Marlene, famosa cantora alemã que trazia as cervejas enquanto datilografava o chão e usava aparelho dentário, tinha mais duas irmãs como ela, só que menores, numa escala geométrica.

A menor era a única aparentemente não conformada com os semblantes de toda a sorte de vagabundos e regionalistas que paravam para tomar um trago e saíam como quem não havia entrado. Ela olhava para o poeta com um misto de frieza e curiosidade: lábios leporinos, dentes pontiagudos castigavam a tampa da esferográfica.

A outra, como acontece com freqüência em famílias de muitos irmãos, havia saído errada. Tinha as mesmas características físicas das irmãs, mas todas exageradas nos lugares errados. Não falava muito, concordâncias monossilábicas, mas o poeta reparou quando ela disse à irmã mais velha que lhe doíam as glândulas no pescoço.

Depois da quinta cerveja o poeta perdeu um pouco o senso do ridículo e segurou a mão da cantora alemã da segunda guerra mundial: a mais velha delas. A mão era fria como o orgasmo quando ultrapassa a nuca. Ela olhou para ele. Não parecia assustada.

- Mas uma ceva? – perguntou mecanicamente.

- Você gosta de poesia? – ele disse, obviamente sem raciocinar.

Ela riu para um lado, riu para o outro, depois parou de rir e olhou para ele outra vez.

- Talvez eu goste de poemas – ela disse – mas não gosto de poetas – então voltou a rir, tirou a mão de baixo da dele e parou de rir em seguida.

- Mas são os poetas que fazem as poesias – ele disse.

Imaginou que aquilo pudesse ser uma espécie de jogo de esconder.

- Tudo bem, você é poeta?

- E dos grandes.

- Então escreva um poema.

- Não é assim...

- Não é assim o quê?

- Que se faz um poema... Nada a ver com obrigação.

Um sujeito que parecia ser o pai das três irmãs loiras apareceu de repente com uma cerveja nova e, com os olhos, fez a menina correr para trás do balcão.

- Mais alguma coisa ou vais pagar a conta? – ele disse.

- Vou beber primeiro, depois pago a conta – disse o poeta.

O homem velho parecia um lençol flutuante, se virou e foi embora.

“Fui desmoralizado injustamente”, pensou o poeta, e permaneceu imóvel na cadeira com braços de triângulo. É claro que aquela conversa de “sou poeta” tinha ido longe demais. Mas Porto Alegre também era longe demais. Tirou um caderno da mochila, lambeu a ponta do lápis e começou a rabiscar uma Ode à Lavradora Alemã:

Te amo como a sola ama a pista de dança
Te amo como o violino ama uma sinfonia
Mas teus ouvidos só entendem a melodia
De coisas que as metáforas não alcançam...

A cerveja certamente lhe tinha subido à cabeça, mas era como se desde o início ele esperasse pela confirmação, ou pelo menos por um álibi satisfatório, de que poderia perder completamente o pudor.

Levantou vagarosamente, mas com firmeza, depois lembrou que deveria fazer o gestual de um grande poeta, então ajeitou a coluna e seguiu até o banheiro. No caminho encarou o provável patriarca, que tinha bigodes pontudos e havia comido miúdos pouco tempo atrás.

Ele apenas encarou o poeta de volta e lambeu um lado do bigode. As irmãs mais novas trocavam risadinhas à mesa. A mais velha, Lili Marlene, aguardava com tédio em pose de calendário o correr dos acontecimentos, escorada no balcão: pé de unhas descascadas sobre joelho da perna oposta.

Na cabine do banheiro o poeta pôde ouvir uma gaita texana enquanto separava pedras de pergaminhos na busca de palavras para um discurso infalível que lhe servisse de saída triunfal e recuperasse sua honra ofendida. De repente uma dor lancinante na barriga o enrugou diante da latrina. Iria ao médico no dia seguinte: a boca seca escamosa, consulta marcada, placas na língua. Mas no momento vivia uma espécie de duelo mítico.

Jogou uma nota de dez na mesa e disse:

- Tira os 10% da menina.

Logo depois se arrependeu: devia ter dito “moça”.

O velho olhou para ele com o rabo do olho: parecia o mago Panoramix. Apanhou o dinheiro e devolveu um real à mesa com desleixo, como se o tivesse testando. O poeta precisou então aumentar o tom de voz.

- ESCUTA AQUI...

- Não trabalhamos com gorjetas. Se quiser, entregue o senhor a ela.

Aquilo tinha sido legal, ser chamado de senhor. De modo que o poeta acenou com a cabeça e se virou para as duas meninas, que pararam imediatamente de cochichar e se viraram também. Uma delas encheu as mãos com as próprias tranças, a outra saiu correndo para o banheiro com a alegação de que seu nariz sangrava. A mais velha, não se sabe como, havia desaparecido. O poeta olhou portanto para a mais nova de todas. Sobrancelhas unidas serviam seus olhos com dissimulação sutil.

- Lá de onde eu venho as pessoas pagam 10% da refeição para quem os serve bem.

- Mas você não comeu nem mesmo um pastel.

Era um ponto de vista legítimo.

- De qualquer maneira, fique com o dinheiro.

E o poeta deixou a nota na mesa sobre os quatro versos. Saiu do bar olhando para o chão.

“Nem um pastel, nem um pastelzinho!”, pensava. “Que belo malandro, com esse papo de lá na cidade grande... Muito bom! Só não ouvi as palmas. De qualquer maneira, fique com o dinheiro... E nem mesmo foi capaz de lhe dar o dinheiro na mão! Pensou na certa ter sido tomada por uma prostituta”.

Metido numa capa pesada, tornou-se automaticamente um personagem de Gogol. Fuzilava a calçada com passos, totalmente afetado pelo álcool, como se tivesse bebido por cinco homens. Ziguezagueava pela quadra do Colégio Militar, pensando no sorriso triste que se dá a um amor que não se pode obedecer. A rua estava totalmente escura, a lua com sinusite, os carros pareciam manchas tontas, perdidos nas cores de um quadro feito com lágrimas impressionistas.

Em dado momento da marcha o poeta começou a sentir o corpo desmaiar, golfando em seguida nas próprias calças. Então um garoto de máscara negra surgiu na sua frente, outro maior atrás: vasta queimadura no pescoço.

- Te estouro a barriga! – disse o primeiro, muito baixo e com raiva.

Segurava algo escuro dentro da escuridão, e isso escurecia a compreensão da coisa toda. Mas o poeta tinha a cabeça noutro lugar. E disse, em forma de sussurro, para seu próprio coração – olhar embaçado:

- De qualquer maneira... fique com o dinheiro.
***
Sentia muito frio quando olhou seu dedão do pé. Precisava cortar as unhas. Era noite funda. Atrás da cabeça, concreto. Muito frio. Sem camisa, sem sapatos... calça? Sim. Uma mancha pastosa na barriga. Pensamento suave. Uma sensação gelatinosa de perda dos sentidos. Pensamento nuvem. Tosse para dentro. O frio leve de um suspiro. Líquidos metálicos, chafariz de garganta. Mas que lindo tom de vermelho! Uma dançarina de tango... Era noite, não havia pássaros, mas havia sinfonia. Um farol de trânsito mudando de cor, latrocínio lunar, fios de alta tensão e, em meio à tensão, minutos escorriam pelo meio-fio. Pensamento asa. Um baile, sapatos alternados numa janela, um colo, bochechas lisas, pássaros imaginários, dois dentes grandes enrolados numa gaze, cabelos negros na escova, olhos simples, uma plantação de cenouras, dedos, calos... Um sopro.

9 comentários:

Anônimo disse...

... saudades da sua ostentação!
beijos sr. marona

leonardo marona disse...

ostrentação

CFagundes disse...

Muito bom Leo. Ótimas imagens, gogolesco,né? Devo plagiá-lo em breve. Só me preocupo com sua saúde...
Não pude deixar de reparar também na boçalidade simpática do comentarista acima. Mó barato.

leonardo marona disse...

ahahha... não se preocupe, Cris. não há nada nesse aspecto que vc não tenha visto antes em mim.

gogolesco? adorei.

pois é, eu adoro gente anônima, pq posso imaginá-los como eu quiser.

Anônimo disse...

leo, tá incrível. prendeu longo do começo ao fim. e o fim, lindo, misterioso. um monte de coisas. nem dá para falar. sensação forte de que algo cresceu forte. beijos, dani

Anônimo disse...

cara... tô boba. li e reli. tá bom demais. beijos, dani

leonardo marona disse...

Dani, querida, fiquei feliz que gostou da leitura, mas se vc é uma da Danis que eu conheço, gostaria de saber exatamente qual é, porque estou muito longe e gosto de imaginar o sorriso das pessoas de quem gosto.

vc diria pra mim?

beijo, leo

Anônimo disse...

hummmmmm.dani szwertsz... e por aí vai. é o mínimo que de mim posso dizer.

leonardo marona disse...

porra, dani!

long time no see!

vamos tomar uma cerveja no dia 10 de outubro, que tal?

muito bom que vc leu, duas vezes, e gostou.

beijo grande.

leo