descobri que meu avô
por parte de mãe (alcoólatra)
bebia cachaça com Lupicínio,
fazia samba em caixa de fósforo
com os olhos doces de martírio,
e além disso ele era um poeta.
escrevia muitos sonetos idílicos
só de olhar as mulheres na rua,
fossem novas, velhas, prostitutas.
quando minha avó, sua esposa,
morreu de câncer – o mesmo câncer
que mataria depois sua filha e, portanto,
minha mãe – enquanto velavam o corpo
com copos de lágrimas e lenços úmidos,
o velho sumiu: foi a um canto quieto de mata funda
onde sentou e escreveu meia dúzia de versos únicos
e, quando voltou, depositou o papel
entre as mãos cruzadas da sua mulher.
o padre engasgou o amém, tias gordas engoliram véus
– aqueles eram versos em sangue –
e enquanto o poeta abria o caixão,
ninguém, nem mesmo suas amantes,
reconheceu naquele gesto um adeus e um pedido de perdão,
nem soube jamais o que ele havia escrito no papel:
só ela e ele e a terra, e quem sabe deus, e quem sabe em vão.
hoje ele já não escreve mais estribilhos,
nem me reconhece quando me vê.
belisca as enfermeiras no asilo,
grita que ainda tem sede de viver,
como fariam muitos poetas conhecidos.
o velho era um poeta do agora,
porque escrevia como quem voa,
só de olhar as pessoas na rua,
e depois jogava os poemas fora,
em copos de cachaça, em surras,
como se fosse uma coisa à toa,
como fazem os grandes poetas.
e na vez do meu sino – pó de ossos ao vento
este homem continuará vivo, porque poetas
– como pergaminhos – são alheios ao tempo.
15.9.06
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Um comentário:
Ser alheio ao tempo que dilacera... eis a saída.
Naira
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