13.8.06

“o sumiço do peixe”

minha avó comprou peixe na feira
meu avô e eu comemos felizes
minha avó detestava peixe
e passou o almoço resmungando
palavras incompreensíveis
para o ouvido humano
mas eram palavras amáveis
tenho certeza que eram
só que do jeito lá dela.

no dia seguinte: dia dos pais
de dia remela, saudades, palavras...
de noite o desprezo paciente
todos no fim desprezados
pelo real sentimento de perda
como se a pasta que guarda
nossa única chave de chance
tivesse caído pelo bueiro.

depois desse dia: dia nublado
dia de reconhecer as posses
nada muito bom quando se olha para os lados
entretanto, ainda usamos bigodes
meu avô só ouve a estima do seu próprio coração
demorou meio século para reconhecer a verdade
eu me defino por minha forma de expressão
pouca certeza e muita voltagem
normalmente um furo em olhos sem face.

meu avô pergunta o que foi feito do peixe
eu me incluo enquanto engulo a indigestão
minha avó grita que desapareceu o peixe
não está na tigela, nem no forno, nem no gelo
o peixe não está em lugar nenhum.

meu avô apenas aperta a boca flácida
sem mais sombra de dente na carne
todos dignamente afogados
no copo d’água sobre a pia.

nenhum de nós parece reconhecer o próprio espelho
o fatídico selo
germinal pululante
todos parecem se esforçar em vão
mas existe um mistério invisível
um sumiço vivo entre todos nós.

2 comentários:

natércia pontes disse...

que coisa mais linda da vida! vou imprimir em times new romam
emoldurar com passe par tout e madeira escura
para pendurar na parede da sala de visitas.

te amo e morro de saudades por aqui.
ps: meu coração é grande e pequeno grande e pequeno grande e pequeno.

Anônimo disse...

me fez pensar em buñuel. o discreto charme da burguesia. o poema tá muito bonito.