este relato usa nomes reais
mas não passa de uma ficção
sobre um momento histórico
para formar outro momento
não tão importante assim
nem tão histórico assim
mas meu.
mas não passa de uma ficção
sobre um momento histórico
para formar outro momento
não tão importante assim
nem tão histórico assim
mas meu.
No início das filmagens de Shadows, John Cassavetes telefonou para Charles Mingus, que na época vivia com seus óculos escuros de abelha, comendo tortas de merengue pelos becos do Village, criando suas epopéias, sempre – os cabelos como choque de alta tensão – da sua forma caótica e sangrenta. Combinaram de se encontrar para beber.
John precisava de uma trilha para seu filme. Um filme feito a partir de um estudo da improvisação, no qual Cassavetes atuava como um motor propulsor, incendiando seus alunos, que eram também seus atores. Miles Davis tinha refugado por causa do seu contrato de exclusividade com a Columbia. Mingus estudava cada vez em águas mais profundas, e era fácil encontrá-lo atrás de um rabo ou um trago ou uma dose nos arredores do Café Bohemia. Era o homem certo para o trabalho, se fosse possível encontrá-lo ainda de pé.
John explicou a Mingus o teor do seu filme, e porque precisava dele. Como sempre, Cassavetes queria o instante, o fogo ainda frio, na chama ainda azul, o cume da emoção capturado no instante exato. Mingus disse algo como “Cara, acho que gostei da sua idéia. Mas me deixe pensar”, e desligou. Pouco tempo depois, John telefonou.
- Tudo bem, cara, queremos fazer – disse Mingus. – Vai ser com o Shafi no alto. Mas preciso de tempo para trabalhar. Quero fazer isso direito.
- Tudo bem, Charlie, sem problema – disse Cassavetes.
Houve um tempo de silêncio, durante o qual se ouvia uma respiração pesada como um bocejo de hipopótamo.
- Quanto tempo, Charlie? – disse John.
- Tempo. Eu te procuro quando encontrar o tema.
Mingus desligou o telefone.
Três meses se passaram, as filmagens já estavam bastante adiantadas, quando John procurou Mingus outra vez.
- Ei, Charlie, como vão as coisas?
- Mal, cara, muito mal... Tem uns gatos filhos-da-puta nessa merda de apartamento que ficam cagando sobre os meus papéis e não me deixam trabalhar. Impossível trabalhar desse jeito, escutou? Impossível me concentrar desse jeito!
- Os gatos são seus, Charlie?
- Sim, mas não sei como vieram parar aqui. Você precisa se livrar deles. Venha agora.
Mingus desligou o telefone. Isso já estava se tornando uma rotina. John não gostava de rotina. Seu filme não era sobre rotina.
John Cassavetes foi até o apartamento de Charles Mingus com alguns de seus alunos e se livrou de todos os gatos, escovou o assoalho, limpou os vidros, lavou até mesmo o banheiro. Deu trabalho. Era a típica espelunca de um viciado em heroína, muito comum no Village daqueles tempos. Tinha as janelas emperradas e completamente embaçadas, o mofo imperante descolando o reboco, tábuas de assoalho que rangiam por debaixo do carpete encardido mal-fixado, com muitos buracos de pontas de cigarro nele, as paredes descascadas como carrancas demoníacas num branco poroso, algumas garrafas esquecidas no chão, como bebês natimortos, e uma certa paz caótica que se encontra na mortalha deste tipo de ambiente que, apesar de tudo, ganhava naturalidade e até mesmo beleza, com o contrabaixo de Mingus intacto e muito bem polido no canto da sala.
Mingus observou tudo de pé, braços cruzados, com a cara amarrada por trás da escuridão das lentes escuras. Parecia contrariado com o fato de estarem mexendo nos seus papéis. Mas deixou que terminassem. No final ficaram apenas ele e John, tomando o que havia sobrado de um quarto de vinho de mesa e fumando cigarros na varanda, enquanto aviões supersônicos sobrevoavam os arranha-céus de Manhattan.
- O que você já tem para mim, Charlie? – disse John com delicadeza.
- Lady Johnny, não me pressione. Tenho o tema para o seu filme.
- Posso ouvir?
- Sim, é claro, garoto. Mas, por favor, não me pressione.
Mingus deu um forte trago no seu cigarro, cheio de manha, e solfejou seis notas que não pareceriam harmônicas, não fossem, é claro, de Charles Mingus.
- É isso? – disse John.
- Só que ainda não escrevi. Preciso de mais tempo.
- Tudo bem.
Cassavetes visitava o estúdio de Mingus quase diariamente. Estava cada vez mais irritado com a lentidão do seu processo de composição, mas o respeitava demais como músico para interferir. Um artista precisa de espaço, ele pensava, mas de onde eu vou tirar tempo?
Um belo dia, John chegou pela manhã com pães e leite e encontrou Mingus deitado no chão, dando cabeçadas contra a parede, sem nenhuma expressão no rosto, completamente nu.
- Você não parece muito bem, Charlie.
Mingus parou, firmou um joelho na frente do outro e se levantou com a ajuda da parede. Andou vagarosamente na direção de John e o agarrou com força pelo colarinho. Perdigotos como chuva ácida amarrotaram a manhã de sol.
- Escuta, cara, não posso trabalhar... Essa espelunca parece um consultório dentário! Tudo muito limpo, muito arrumado! Preciso dos gatos de volta...
John precisava de uma trilha para seu filme. Um filme feito a partir de um estudo da improvisação, no qual Cassavetes atuava como um motor propulsor, incendiando seus alunos, que eram também seus atores. Miles Davis tinha refugado por causa do seu contrato de exclusividade com a Columbia. Mingus estudava cada vez em águas mais profundas, e era fácil encontrá-lo atrás de um rabo ou um trago ou uma dose nos arredores do Café Bohemia. Era o homem certo para o trabalho, se fosse possível encontrá-lo ainda de pé.
John explicou a Mingus o teor do seu filme, e porque precisava dele. Como sempre, Cassavetes queria o instante, o fogo ainda frio, na chama ainda azul, o cume da emoção capturado no instante exato. Mingus disse algo como “Cara, acho que gostei da sua idéia. Mas me deixe pensar”, e desligou. Pouco tempo depois, John telefonou.
- Tudo bem, cara, queremos fazer – disse Mingus. – Vai ser com o Shafi no alto. Mas preciso de tempo para trabalhar. Quero fazer isso direito.
- Tudo bem, Charlie, sem problema – disse Cassavetes.
Houve um tempo de silêncio, durante o qual se ouvia uma respiração pesada como um bocejo de hipopótamo.
- Quanto tempo, Charlie? – disse John.
- Tempo. Eu te procuro quando encontrar o tema.
Mingus desligou o telefone.
Três meses se passaram, as filmagens já estavam bastante adiantadas, quando John procurou Mingus outra vez.
- Ei, Charlie, como vão as coisas?
- Mal, cara, muito mal... Tem uns gatos filhos-da-puta nessa merda de apartamento que ficam cagando sobre os meus papéis e não me deixam trabalhar. Impossível trabalhar desse jeito, escutou? Impossível me concentrar desse jeito!
- Os gatos são seus, Charlie?
- Sim, mas não sei como vieram parar aqui. Você precisa se livrar deles. Venha agora.
Mingus desligou o telefone. Isso já estava se tornando uma rotina. John não gostava de rotina. Seu filme não era sobre rotina.
John Cassavetes foi até o apartamento de Charles Mingus com alguns de seus alunos e se livrou de todos os gatos, escovou o assoalho, limpou os vidros, lavou até mesmo o banheiro. Deu trabalho. Era a típica espelunca de um viciado em heroína, muito comum no Village daqueles tempos. Tinha as janelas emperradas e completamente embaçadas, o mofo imperante descolando o reboco, tábuas de assoalho que rangiam por debaixo do carpete encardido mal-fixado, com muitos buracos de pontas de cigarro nele, as paredes descascadas como carrancas demoníacas num branco poroso, algumas garrafas esquecidas no chão, como bebês natimortos, e uma certa paz caótica que se encontra na mortalha deste tipo de ambiente que, apesar de tudo, ganhava naturalidade e até mesmo beleza, com o contrabaixo de Mingus intacto e muito bem polido no canto da sala.
Mingus observou tudo de pé, braços cruzados, com a cara amarrada por trás da escuridão das lentes escuras. Parecia contrariado com o fato de estarem mexendo nos seus papéis. Mas deixou que terminassem. No final ficaram apenas ele e John, tomando o que havia sobrado de um quarto de vinho de mesa e fumando cigarros na varanda, enquanto aviões supersônicos sobrevoavam os arranha-céus de Manhattan.
- O que você já tem para mim, Charlie? – disse John com delicadeza.
- Lady Johnny, não me pressione. Tenho o tema para o seu filme.
- Posso ouvir?
- Sim, é claro, garoto. Mas, por favor, não me pressione.
Mingus deu um forte trago no seu cigarro, cheio de manha, e solfejou seis notas que não pareceriam harmônicas, não fossem, é claro, de Charles Mingus.
- É isso? – disse John.
- Só que ainda não escrevi. Preciso de mais tempo.
- Tudo bem.
Cassavetes visitava o estúdio de Mingus quase diariamente. Estava cada vez mais irritado com a lentidão do seu processo de composição, mas o respeitava demais como músico para interferir. Um artista precisa de espaço, ele pensava, mas de onde eu vou tirar tempo?
Um belo dia, John chegou pela manhã com pães e leite e encontrou Mingus deitado no chão, dando cabeçadas contra a parede, sem nenhuma expressão no rosto, completamente nu.
- Você não parece muito bem, Charlie.
Mingus parou, firmou um joelho na frente do outro e se levantou com a ajuda da parede. Andou vagarosamente na direção de John e o agarrou com força pelo colarinho. Perdigotos como chuva ácida amarrotaram a manhã de sol.
- Escuta, cara, não posso trabalhar... Essa espelunca parece um consultório dentário! Tudo muito limpo, muito arrumado! Preciso dos gatos de volta...
***
Nesse ritmo seguiram as filmagens. Uma vez o tema estabelecido, Mingus passou a freqüentar um pequeno cortiço esfacelado – que todos chamavam carinhosamente de estúdio – com sua banda, onde assistia às imagens do filme, tocava livremente e discutia suas idéias com Cassavetes, mas só depois que estivesse embriagado. Antes disso, amaldiçoava as paredes e negava qualquer idéia que não a sua, com a justificativa de que o estavam pressionando e que um artista verdadeiro precisa de tempo para criar. Mingus detestava discutir sobre música, ou que lhe ditassem uma conduta. Batia o pé com relação a escrever formalmente a trilha. Mas virava uma criança dócil que se satisfaz com um pirulito em espiral quando estava bêbado. Parecia ser várias pessoas numa só, muitas vezes ao mesmo tempo.
- Que merda, Charlie! – gritou Cassavetes, irritado muitos diriam, não fosse a sua maneira de demonstrar entusiasmo. – Escutem, rapazes, vocês são capazes de improvisar... São formidáveis quando improvisam... Podem improvisar a partir do tema que já têm!
- Impossível, meu camaradinha. Não podemos fazer isso – disse Mingus. – Negativo. Somos artistas! É preciso que isso seja escrito devidamente. É uma bela música, cara.
No fim ficou estabelecido um acordo entre os dois. A banda de Mingus improvisaria a partir do tema composto pelo próprio, como se estivessem tocando num clube de jazz dentro do filme. Gravaram a trilha em poucas horas, e então Charles Mingus desapareceu.
John se deu conta de que precisava rodar mais algumas cenas antes de dar o filme por terminado. Convocou a atriz Lelia Goldoni, protagonista do filme, que estava tendo um filho na Califórnia.
- Precisamos de mais umas cenas, Lelia. Você pode vir?
- Eu cortei os cabelos, John.
- Te arranjamos uma peruca.
- Acabei de ter um filho.
- Já escolheu o nome?
- Ainda não.
- Então escolha logo e venha no vôo das nove horas.
É claro que era preciso encontrar Charles Mingus. Mas não havia sinal dele. Cassavetes ligou para Shafi Hadi. Mingus havia viajado para Tijuana, no México. Fazia alguns meses. Shafi também não tinha notícias desde então. Mas falou sobre o que parecia ser uma espécie de uma expedição musical.
- Esse filho-da-puta viciado fumando peiote e eu aqui comendo merda – bufou John.
Shafi não disse nada.
- Escuta, Shafi, você não quer fazer no lugar dele?
- Ele compôs a música, cara. Não tem como fazer da maneira que ele faz.
- Eu quero da sua maneira!
- Tá legal.
Shafi Hadi era muito magro e alto, tinha uma postura elegante e se vestia muito bem, por mais que estivesse sempre com roupas amarrotadas cheirando a bordel. Chegou no estúdio onde encontrou John com uma camisa abotoada e um colete puído, anotando num papel com a mão apoiada na testa, falando alto com ninguém.
- Ei, Lady Johnny! – gritou Shafi. – Falando com os mortos?
- Vamos gravar? – disse John se virando bruscamente.
- Espere só eu montar o meu cisne. Então você terá o seu lago.
John mostrou a Shafi os trechos do filme que sua música cobriria. Mostrou três vezes os mesmos trechos. Shafi Hadi permaneceu em silêncio o tempo todo, com os olhos semifechados. Então ficaram os dois se olhando em silêncio. John com as mãos nas ancas, Hadi abraçado ao seu sax.
- Você espera que eu toque dessa maneira? – disse o músico finalmente.
- Quero que toque pensando nas imagens que vê. Pensando no que elas te fazem sentir.
- Preciso de uma história.
- O quê?
- Preciso que você me conte a história da minha vida, para poder tocar sobre ela.
John ficou um minuto ou dois vidrado nos olhos de Shafi, pensando no assunto. Poderia tanto engolir sua cabeça quanto pular pela janela. Mas depois subiu na mesa e começou a contar uma história, uma história alucinada, uma história qualquer sobre um saxofonista que tinha problemas com a bebida e com as agulhas, e em pouco tempo estava pulando freneticamente de cadeira em cadeira, fazendo caretas monstruosas e passos de dança, esculpindo mensagens no ar com as mãos, desenhando sonhos enlouquecidos num mar opiáceo, pelo que Shafi Hadi soprou sua história de olhos fechados. E então foram as sombras. E nada mais.
- Que merda, Charlie! – gritou Cassavetes, irritado muitos diriam, não fosse a sua maneira de demonstrar entusiasmo. – Escutem, rapazes, vocês são capazes de improvisar... São formidáveis quando improvisam... Podem improvisar a partir do tema que já têm!
- Impossível, meu camaradinha. Não podemos fazer isso – disse Mingus. – Negativo. Somos artistas! É preciso que isso seja escrito devidamente. É uma bela música, cara.
No fim ficou estabelecido um acordo entre os dois. A banda de Mingus improvisaria a partir do tema composto pelo próprio, como se estivessem tocando num clube de jazz dentro do filme. Gravaram a trilha em poucas horas, e então Charles Mingus desapareceu.
John se deu conta de que precisava rodar mais algumas cenas antes de dar o filme por terminado. Convocou a atriz Lelia Goldoni, protagonista do filme, que estava tendo um filho na Califórnia.
- Precisamos de mais umas cenas, Lelia. Você pode vir?
- Eu cortei os cabelos, John.
- Te arranjamos uma peruca.
- Acabei de ter um filho.
- Já escolheu o nome?
- Ainda não.
- Então escolha logo e venha no vôo das nove horas.
É claro que era preciso encontrar Charles Mingus. Mas não havia sinal dele. Cassavetes ligou para Shafi Hadi. Mingus havia viajado para Tijuana, no México. Fazia alguns meses. Shafi também não tinha notícias desde então. Mas falou sobre o que parecia ser uma espécie de uma expedição musical.
- Esse filho-da-puta viciado fumando peiote e eu aqui comendo merda – bufou John.
Shafi não disse nada.
- Escuta, Shafi, você não quer fazer no lugar dele?
- Ele compôs a música, cara. Não tem como fazer da maneira que ele faz.
- Eu quero da sua maneira!
- Tá legal.
Shafi Hadi era muito magro e alto, tinha uma postura elegante e se vestia muito bem, por mais que estivesse sempre com roupas amarrotadas cheirando a bordel. Chegou no estúdio onde encontrou John com uma camisa abotoada e um colete puído, anotando num papel com a mão apoiada na testa, falando alto com ninguém.
- Ei, Lady Johnny! – gritou Shafi. – Falando com os mortos?
- Vamos gravar? – disse John se virando bruscamente.
- Espere só eu montar o meu cisne. Então você terá o seu lago.
John mostrou a Shafi os trechos do filme que sua música cobriria. Mostrou três vezes os mesmos trechos. Shafi Hadi permaneceu em silêncio o tempo todo, com os olhos semifechados. Então ficaram os dois se olhando em silêncio. John com as mãos nas ancas, Hadi abraçado ao seu sax.
- Você espera que eu toque dessa maneira? – disse o músico finalmente.
- Quero que toque pensando nas imagens que vê. Pensando no que elas te fazem sentir.
- Preciso de uma história.
- O quê?
- Preciso que você me conte a história da minha vida, para poder tocar sobre ela.
John ficou um minuto ou dois vidrado nos olhos de Shafi, pensando no assunto. Poderia tanto engolir sua cabeça quanto pular pela janela. Mas depois subiu na mesa e começou a contar uma história, uma história alucinada, uma história qualquer sobre um saxofonista que tinha problemas com a bebida e com as agulhas, e em pouco tempo estava pulando freneticamente de cadeira em cadeira, fazendo caretas monstruosas e passos de dança, esculpindo mensagens no ar com as mãos, desenhando sonhos enlouquecidos num mar opiáceo, pelo que Shafi Hadi soprou sua história de olhos fechados. E então foram as sombras. E nada mais.
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