28.3.06

“parati”

se te visto com meus olhos você diz que é errado, mesmo assim li teu texto, não com os olhos mas com a boca, pouco antes de por causa da falta, de mãe me doeu você ter me mandado embora daquela maneira mesmo que eu tenha engolido teu texto assim como hoje engulo este porque neste pensamos ao mesmo tempo no mesmo poeta percevejo das horas vadias vazias que se foram para sempre deixando para trás apenas meu resto e teu rastro na ferrugem da banheira que secava momentos durante os quais passeávamos juntos no parque e contávamos mentiras baixinho deitados sobre o lençol velho e fajuto, você vomitava gomos de cacau enquanto eu forjava seriedade castradora até que você me soprava música numa língua inventada pela minha orelha sem pensar em nada a não ser dois sendo um mesmo e andávamos sem as mãos dadas porque éramos fortes o suficiente ou pensávamos enquanto esquecíamos o quanto era injusto ficarmos juntos precisando tanto cada um de si mesmo enquanto olhávamos casais de braços dados, com seus semblantes tranqüilos e desesperados, e ríamos porque eles eram tão assustadoramente assustados quanto nós mas nós preferíamos ficar sozinhos juntos porque assim o susto dava mais frio no bucho cheio de barulhos quando deitava minha cabeça no teu estômago frágil e dormia e sonhava que estava sonhando um sonho rápido como a vida já que no fundo mesmo sonhando não era capaz de sonhar pois não sobrava o tempo que já tinha gasto pensando no que fazer contigo ali do meu lado sendo que eu estava tão longe que esquecia do sonho sonhado dentro do sonho, como disse uma vez Edgar Allan Poe com relação à ilusão vital dos homens, quando por fim eu acordava e percebia que o homem que era eu e que estava te vendo dormir ao meu lado no fundo era mais um sonho medonho dentro do sonho no sonho da vida porque de olhos abertos não era possível te ver dormir já que “fui embora, tenha uma boa tarde, para sempre” melhor que o sonho bom e portanto esquecido como nos esquecemos de repente de nos dar bom dia e os beijos mordiam a palidez dos rostos na forma de dias nublados que foram ficando maduros e duros e escuros porque afinal esperávamos pelo futuro sem tempo de perder tempo passado juntos porque afinal lá fora o mundo é curto e enorme e pode quem sabe te escolher como trunfo ou arrancar teu pé, mas tardes que agora tardam as tardes saíram do armário caro e, claro, não é do final do sol que se vive, como o sol que apagou quando pensei no mesmo poeta enquanto comia uma folha de alface, quem diria eu, comendo alface, mas não se preocupe porque o alface não tinha o sal que você pensou sem o sol na caneca debaixo do braço no momento em que pensei nos teus pés tortos perto da minha boca miúda medrosa engolindo pequenas pedras plantadas por cactos sem água quando lágrimas se ocupam da culpa por molhar a fronte falsa da tristeza e olhos púrpuras já não maquilam mais tuas certezas já que não são o bastante para manter a diferença próxima, mas tuas pupilas me lembro que as via da cor daquela rosa de plástico quebrada como as rosas que estavam no poema em que pensamos juntos, tão longe você de mim, tão para sempre ou talvez fosse apenas um ventre, sim, era mesmo um ventre preso por cordas e havia a palavra “lasso”, a ridícula palavra “lasso”, e talvez o poeta e o poema que eram teus apesar de meus – não fossem, os dois, escravos do oposto do posto que ocupas no meu intestino – fossem para outro projeto de pantufas lado a lado na beira da cama e é claro que isso importa mas não tanto a ponto de te perguntar por que aquelas rugas na testa do violão solista que corta notas enquanto escrevo no branco com o ponteiro das horas, “depois de ti não aprendi mais nada”, ainda espero ansiosamente por tuas curvas calamitosas, por mais que tua espera não seja por mim, por mais que tua lembrança tenha me reinventado no esquecimento, imagino porque estou vivo – ou isso é a morte? – mas se ainda consigo escrever quer dizer que talvez esteja mesmo morto pois só os mortos para a vida conseguem escrever sobre ela como um fantasma que vigia de cima dos telhados manchados da tua lembrança em tantas garrafas de vinho de mesa que misturado ao meu sangue ralo me faz passar vergonha quando lembro que você me negou uma só vez para sempre – coisa que nem Pedro fez com Cristo! – e disse em seguida para arrombar ferida que eu jamais seria capaz de amar alguém e, com toda razão, sem porém, jogou pela janela uma pomba branca depenada sem asas que até então atendia por “meu coração” e caiu bem perto de um homem negro de terno sem uma perna no ponto de ônibus das almas vagas como o poeta que no poema, momentaneamente, como num pesadelo disfarçado de sonho no som do sino pensou contigo e comigo através de mágica, e estamos tão longe um do outro e presos neste momento gruta em que o céu se me nega porque só vejo o erro do teu reflexo me dando língua e eu precisava tanto te dizer que não sei o que você precisa ouvir por isso digo tudo e não digo nada porque de fato sei da dificuldade de ser o mesmo quando as coisas não saem como queriam os outros que me diferem de mim mesmo e se eu pudesse estar em vários lugares ao mesmo tempo sem ser visto em nenhum lugar estaria agora te vendo escondido entre teus cabelos e tua nuca e teu cheiro avinagrado de coragem por mais que agora, enquanto escrevo esta bobagem pensando que pensamos juntos por um tempo no mesmo tempo do fim das horas do mesmo poeta e na mesma tristeza, por mais que essa tristeza já estivesse chumbada em mim desde o dia em que você veio e foi, por mais que tua mão na minha imagem seja não mais que mais tarde parte tua de mim do que antes cedo era nem meu mesmo ainda, mesmo assim gostei de saber que andas lendo coisas boas e que ainda pensas na morte da mesma forma carinhosa que eu.