5.2.06

"Melancolia Soteropolitana"

O impacto de um dia melancólico na cidade do Salvador me atraiu mais uma vez até o mar. De frente para o mármore que escondia um Cristo aterrorizado de mãos para o alto me senti como o limo da pedra, aprisionado pela vontade das ondas, tão indecifrável quanto a minha consciência de que as coisas se ajeitam, mas demora demais até que aceitemos isso, quando já é tarde para aceitar, e em seguida pensei em Raul Seixas e me envergonhei silenciosamente como aqueles que se orgulham do pai depravado em roupas coloridas e o mar estava, naquele fim de tarde embotado, tão transparente e franco comigo, que baixei a cabeça para as águas suplicantes e disse, num sussurro que durou o tempo de uma lágrima acovardada, que ele, o mar com suas ondas inquiridoras, não teria nada a ganhar de mim a não ser meu limo, entranhado sobre a couraça de uma alma plantada por mãos acorrentadas, alma desconhecida como a rua em que virei na angústia de pensar se a outra poderia ser uma melhor opção, mas não, as respostas não me tranqüilizam, bem menos as suposições, tudo parece estúpido nessa reticência de sal e iodo, como seria a outra rua, a outra cidade, a mulher que não piscou o olho, o murro se fosse com faca, se fosse pelas costas, as costas se fossem sinceras, o silêncio se fosse em olhos vivos, como seria se eu acreditasse no que dizem sobre o amor?

A brisa sibilante torcia contra mim. Contra meu desespero de ser sempre meio sem fim. Quando num segundo asfixiado sou capaz de estranhar o espelho por detrás da luz curiosa das primeiras cigarras, num fim de tarde ensolarado, aquele espelho mentiroso de mar, o ensaio da noite gingada, e me pego pensando com as unhas metidas nas bolsas dos olhos inchados, espremidos pela violência da luz incompreendida: de quem é essa cara?

Ao mar vou inutilmente atrás de respostas: ganho sopros de agonia no pé da orelha. O mar é quase tudo, somos feitos das suas sobras, mas sinto nele uma limitação tão grande, porque ele abarca o mundo, entra em todos os poros, mas não tem o direito de escolher o próprio curso. Assim como eu, está preso em si mesmo, indubitavelmente confinado. E sinto uma espécie de confusa compaixão pelo seu movimento repetitivo, cansado, exausto como o da mãe encurvada que morre de rugas pelo filho que não deixa nascer, porque ama.

Juro a vocês que naquele momento ouvi o lamento do oceano. Ele disse: fui a vida toda dos poetas e dos confusos, dos autistas e dos vagabundos, de modo que hoje não sou nada, estou seco dentro de toda essa massa d’água... E então ele chorou sobre as pedras como quem estica os braços para se salvar do perdão. Como eu que, no entanto, injuriado com a indiscrição do oceano, tentava tirar da cabeça o que nem sabia se ainda tinha, com a ajuda da brisa, ao lado de casais enamorados em beijos de discórdia.

E se tem uma coisa que me opõe aos soteropolitanos é sua capacidade de brigar baixo e brincar alto, ao contrário de mim, que engulo culpas como a noite engole estrelas, no momento em que o espirro da Via Láctea surgia como confete por sobre nuvens ralas com medo de virar chuva fina, o que foi tão inevitável quanto as lágrimas que insistiam em flertar com as minha bochechas, o abraço sofrido dos braços nos joelhos trêmulos de quem encara o castigo sem saber o que fez primeiro. Tão inevitável quanto olhar um negro sozinho, pouco abaixo de mim, na quina de uma pedra escondida pela mata devastada, chorando sobre sua pasta de subempregado de grande corporação, enquanto o Salvador dos necessitados lhe dá as costas e o fim do sol o recebe pela porta dos fundos, inclinando-se humildemente sobre a chuva que se forma da tristeza de um dia melancólico e portanto incompreensível na cidade onde os risos se comparam à vontade de comer, mas nada pode fazer o sol a não ser oferecer uma idéia vaga de vida velha a um povo enterrado em questões desconhecidas, povo que vaga com os pescoços rijos e vincados, a testa suada em ladeiras íngremes para cima e para baixo, povo que dorme de olhos abertos por dentro dos seus uniformes de fábrica, povo que vende solidão para colher paz, mas acaba com um ramo de palavras repetitivas esmagadas pela força da chuva nos barracões de madeira compensada, as mãos vazias viradas para cima no mesmo suplício que o sol, apesar de toda sua exuberância naquele final de tarde melancólico, não pode atender porque lá vem a lua, porto de poetas bêbados, morada dos piores conselhos de amor, cobrar seu espaço no meio da destruição.

Mas o povo a quem vejo o Salvador dar as costas, apesar de tudo, não pode parar de andar, gente receosa demais para parar, porque não tem mais nome que explique a sensação mais simples e aterradora de pertencimento ao buraco de causas prometidas (perdidas) e nunca antes encontradas, que fazem medo sem motivo e nos permitem ver o que se apresentou como tarde demais para esquecer da noite que vem sorrateiramente nos lembrar que sobre as pedras do mar existe algo tão hesitante quanto aquilo que não sabemos explicar, como a súbita melancolia que me abateu naquele dia e me fez parar aos pés do mármore feito de Cristo com as mãos abertas, igualmente injuriado com a resignação repetitiva do mar naquela tarde oca de terça-feira, sua serena submissão, meu peito tão longe do cérebro, como acontece nos dias em que se ama e se perdoa de graça, como acontece quando procuramos olhos, como acontece com os movimentos involuntários que me levaram até meu cúmplice azul e me deixaram pensando no que passava pela cabeça decapitada pelos botões da camisa do negro pobre mas arrumado – desconfortável dentro da roupa que não era sua e da história que sem sua consulta lhe foi imposta como sina – que chorava por cima da pasta de plástico como se cobrasse alguma dívida do sol, que apenas se afastava, igualmente abatido, e sádico.

E eu estava tão perdido na fixação do meu pensamento decodificado em fragmentos de pequenas mentiras nas quais acredito para levantar da cama de manhã, que nem reparei como o sol também tinha seus motivos para melancolia, conseqüência irrefutável do rastro obrigatório que ele deve ao mar, ambíguo bêbado aprisionado em poesias e pedras. E vi então que todos naquele mirante ansiavam por mais tempo e menos sentido. Todos se orientavam pelo mar porque o erro da tentação de se ver refletido no infinito, ao mesmo tempo que mata, supera a vontade de cobrar explicações de bocas miúdas cheias de silêncios ruidosos e ruídos implícitos em mágoas sem motivo, pequenos enganos que, acumulados, se tornam culpa que, não assumida, se torna ódio.
Assim como eu e talvez o negro e as mãos geladas do final do amor de dois namorados e o sol e a lua atrasada com seu sorriso sarcástico de meia face e o limo das pedras ao encontro das ondas selvagens, tão aflitas e repetitivas quanto os homens, todos estavam aprisionados dentro do desejo irrealizável de apertar a lâmina da vida com o próprio sangue e ser a própria vida sem ter que passar por ela, todos presos na distância infinita que enterra os desejos dos mortos no fundo do mar todos os dias, quando chega a noite e ninguém sabe explicar por quê.

2 comentários:

Anônimo disse...

É Léo, como te disse, Salvador me traz sensações maravilhosas e tristes ao mesmo tempo... Uma certa angústia inexplicável... Enfim, adorei o texto!!!
Vamos ver se a gente consegue se encontrar no carnaval! Quero te contar as novidades...

Beijos!
Cami

Anônimo disse...

que gato!!!!