Um barulho terrível de algo – ou alguém – sendo serrado ao meio me deixou na dúvida se aquilo era um pesadelo ou apenas uma manhã escura de segunda-feira. Depois tive dúvida se uma coisa não implicava diretamente outra coisa.
Eu não estava na minha cama: primeira constatação lógica. O barulho está ficando ensurdecedor: segunda constatação, esta já um pouco danificada pelo estrondo de coisas, ou pessoas, quem sabe até pedaços de coisas e pessoas, caindo violentamente no chão. Ouvia também gargalhadas sádicas pela janela, ainda debaixo das cobertas, quando, virando na cama, me sentei em cima de um gato preto da cara branca do nariz rosado, que me mostrou os dentes e marcou meu flanco direito com quatro unhas imundas e afiadas. Depois saltou e sumiu. Fiquei na cama assustado com o barulho de algo que se havia chocado com a lataria de um carro lá fora. Depois o barulho de vidro estilhaçado e então o silêncio total. Minha vontade era guinchar de dor por causa da unhada que automaticamente inflamou num vermelhão. Mas a perplexidade com o silêncio repentino me tirou de sintonia completamente. E eu tive que correr até a janela para não enlouquecer. Tinha me atrasado.
Esperava gente morta com os membros amputados. Homens embainhados com trabucos mascando fumo e cuspindo notas de dólar no chão. Hominídeos engravatados, ensebados com pastas e cabelos ralos chupados a gel, olhos esbugalhados e peles repuxadas perfuradas pela ação instantânea do ácido corrosivo que o céu cuspia. Todos com boas camisas de seda, todos sem o fundo dos olhos fugindo de si próprios através de ruelas repletas de putrefações e dependentes químicos à beira da morte com cintos gastos de couro afivelados nos braços. Fui à janela ansioso pelo fim do mundo. Ou talvez estivesse ainda sonhando com uma viagem, que era de fato com o que estava sonhando, e pouco antes de acordar me lembro que houve um impasse no sonho, quando encontrei uma ponte a qual eu deveria atravessar para me salvar do que estava me perseguindo – um rapaz parecido comigo, mais forte –, mas a ponte estava bloqueada com toras de madeira ensangüentadas. E ali, naquelas toras de madeira, estava a raiz de tudo aquilo. A prefeitura tinha enviado um mutirão de lenhadores para podar as amendoeiras.
Eram ainda sete da manhã e, como eu não estava em casa, não havia porque me comportar como se estivesse. Então fui até a cozinha e preparei um chá de carqueja, o que jamais faria em casa, sob nenhuma hipótese. No meio do caminho fiz as pazes com o gato, com a leve impressão de que, da parte do gato, as coisas ainda não estavam lá muito bem.
O chá ficou péssimo, cheio de pequenos detritos e um fio de cabelo. Tomei de golada enquanto tentava lembrar o que tinha me arrastado até a cama na noite anterior. Depois de coçar a cabeça inúmeras vezes, desisti de achar o motivo. E sempre me sinto melhor depois de desistir dos motivos, apesar de isso durar pouco e ser na maioria das vezes insuficiente.
Debruçado na janela vi dois homens embrutecidos e suados resmungando um com o outro na mesma altura, dentro de uma caixa de fibra de vidro erguida por um guindaste. Um tinha nas mãos uma moto-serra ligada e o outro, com uns óculos escuros de surfista, não fazia nada além de assobiar uma marchinha de carnaval, o que parecia estar irritando o primeiro, que descontava sua raiva automaticamente na árvore, bem ali, rendida na sua frente, mas poderia perfeitamente ser em mim ou em você numa esquina deserta.
Não sei se era a estranha sensação de não precisar fazer nada, ou se era o fato de não haver nada que se pudesse fazer, mesmo precisando tanto de alguma coisa urgentemente, mas fiquei emocionado com a condição daquela árvore, porque imaginei a tragédia da sua vida.
Uma pobre mãe que, amordaçada por tirânicos algozes, bichos humanos cheios de cachaça e crueldade, é obrigada a ver a morte e o esquartejamento dos seus filhos indefesos, um a um. Afinal, já no chão, depois de serem arrancados dos troncos, os galhos eram estraçalhados pelo cutelo de um terceiro sujeito aparentemente retardado, ou então muito vil, porque ria escandalosamente, parando apenas para enxugar a testa e levantar as calças na altura do umbigo.
Num ímpeto que eu mesmo estranhei vindo de mim e que tem se tornado cada vez mais comum – não esquecer, ligar para Dr. Levi, marcar consulta –, corri até a janela e gritei na direção dos dois homens dentro da caixa de fibra de vidro, em tom de indignação proletária:
- Chega de cortar! Já foi demais!
Eles pararam a serra por um minuto – imediatamente tomado por pássaros e cigarras para dar à cena certo suspense bucólico – e se entreolharam. Riram como se não tivessem entendido nada, a causa mais comum porque uma pessoa ri. Fiquei na janela com minha caneca de chá e ninguém disse outra palavra até que tocou uma sineta e crianças surgiram do portão da creche com seus joelhos ralados e suas têmporas molhadas, corações gangrenados pela boca, meias frouxas e camisas encardidas manchadas com suco artificialmente colorido, gritando e correndo sem motivo, o que me pareceu, naquele momento, por um segundo, o único motivo para se correr. Então mudei de idéia com relação à árvore. E liguei o rádio numa estação.
Via agora uma árvore grisalha e feliz, rejuvenescida e oxigenada por causa das podas, grata por estarem lhe fazendo o serviço de limpeza, por lhe arrancarem as pragas que se acumulam nos galhos mais altos. Foi quando o mais estúpido dos trabalhadores me olhou lá de baixo e disse:
- A gente tem que desmatar tudo. Tem cupinzeiro nas árvore tudo.
Eu não estava na minha cama: primeira constatação lógica. O barulho está ficando ensurdecedor: segunda constatação, esta já um pouco danificada pelo estrondo de coisas, ou pessoas, quem sabe até pedaços de coisas e pessoas, caindo violentamente no chão. Ouvia também gargalhadas sádicas pela janela, ainda debaixo das cobertas, quando, virando na cama, me sentei em cima de um gato preto da cara branca do nariz rosado, que me mostrou os dentes e marcou meu flanco direito com quatro unhas imundas e afiadas. Depois saltou e sumiu. Fiquei na cama assustado com o barulho de algo que se havia chocado com a lataria de um carro lá fora. Depois o barulho de vidro estilhaçado e então o silêncio total. Minha vontade era guinchar de dor por causa da unhada que automaticamente inflamou num vermelhão. Mas a perplexidade com o silêncio repentino me tirou de sintonia completamente. E eu tive que correr até a janela para não enlouquecer. Tinha me atrasado.
Esperava gente morta com os membros amputados. Homens embainhados com trabucos mascando fumo e cuspindo notas de dólar no chão. Hominídeos engravatados, ensebados com pastas e cabelos ralos chupados a gel, olhos esbugalhados e peles repuxadas perfuradas pela ação instantânea do ácido corrosivo que o céu cuspia. Todos com boas camisas de seda, todos sem o fundo dos olhos fugindo de si próprios através de ruelas repletas de putrefações e dependentes químicos à beira da morte com cintos gastos de couro afivelados nos braços. Fui à janela ansioso pelo fim do mundo. Ou talvez estivesse ainda sonhando com uma viagem, que era de fato com o que estava sonhando, e pouco antes de acordar me lembro que houve um impasse no sonho, quando encontrei uma ponte a qual eu deveria atravessar para me salvar do que estava me perseguindo – um rapaz parecido comigo, mais forte –, mas a ponte estava bloqueada com toras de madeira ensangüentadas. E ali, naquelas toras de madeira, estava a raiz de tudo aquilo. A prefeitura tinha enviado um mutirão de lenhadores para podar as amendoeiras.
Eram ainda sete da manhã e, como eu não estava em casa, não havia porque me comportar como se estivesse. Então fui até a cozinha e preparei um chá de carqueja, o que jamais faria em casa, sob nenhuma hipótese. No meio do caminho fiz as pazes com o gato, com a leve impressão de que, da parte do gato, as coisas ainda não estavam lá muito bem.
O chá ficou péssimo, cheio de pequenos detritos e um fio de cabelo. Tomei de golada enquanto tentava lembrar o que tinha me arrastado até a cama na noite anterior. Depois de coçar a cabeça inúmeras vezes, desisti de achar o motivo. E sempre me sinto melhor depois de desistir dos motivos, apesar de isso durar pouco e ser na maioria das vezes insuficiente.
Debruçado na janela vi dois homens embrutecidos e suados resmungando um com o outro na mesma altura, dentro de uma caixa de fibra de vidro erguida por um guindaste. Um tinha nas mãos uma moto-serra ligada e o outro, com uns óculos escuros de surfista, não fazia nada além de assobiar uma marchinha de carnaval, o que parecia estar irritando o primeiro, que descontava sua raiva automaticamente na árvore, bem ali, rendida na sua frente, mas poderia perfeitamente ser em mim ou em você numa esquina deserta.
Não sei se era a estranha sensação de não precisar fazer nada, ou se era o fato de não haver nada que se pudesse fazer, mesmo precisando tanto de alguma coisa urgentemente, mas fiquei emocionado com a condição daquela árvore, porque imaginei a tragédia da sua vida.
Uma pobre mãe que, amordaçada por tirânicos algozes, bichos humanos cheios de cachaça e crueldade, é obrigada a ver a morte e o esquartejamento dos seus filhos indefesos, um a um. Afinal, já no chão, depois de serem arrancados dos troncos, os galhos eram estraçalhados pelo cutelo de um terceiro sujeito aparentemente retardado, ou então muito vil, porque ria escandalosamente, parando apenas para enxugar a testa e levantar as calças na altura do umbigo.
Num ímpeto que eu mesmo estranhei vindo de mim e que tem se tornado cada vez mais comum – não esquecer, ligar para Dr. Levi, marcar consulta –, corri até a janela e gritei na direção dos dois homens dentro da caixa de fibra de vidro, em tom de indignação proletária:
- Chega de cortar! Já foi demais!
Eles pararam a serra por um minuto – imediatamente tomado por pássaros e cigarras para dar à cena certo suspense bucólico – e se entreolharam. Riram como se não tivessem entendido nada, a causa mais comum porque uma pessoa ri. Fiquei na janela com minha caneca de chá e ninguém disse outra palavra até que tocou uma sineta e crianças surgiram do portão da creche com seus joelhos ralados e suas têmporas molhadas, corações gangrenados pela boca, meias frouxas e camisas encardidas manchadas com suco artificialmente colorido, gritando e correndo sem motivo, o que me pareceu, naquele momento, por um segundo, o único motivo para se correr. Então mudei de idéia com relação à árvore. E liguei o rádio numa estação.
Via agora uma árvore grisalha e feliz, rejuvenescida e oxigenada por causa das podas, grata por estarem lhe fazendo o serviço de limpeza, por lhe arrancarem as pragas que se acumulam nos galhos mais altos. Foi quando o mais estúpido dos trabalhadores me olhou lá de baixo e disse:
- A gente tem que desmatar tudo. Tem cupinzeiro nas árvore tudo.
Continuei revezando minha atenção entre o gosto terrível do chá, que insistia em me lembrar de que eu não estava em casa, a árvore que, a partir de então, passei a imaginar envergonhada por estar sendo desnudada na frente de tantas pessoas das suas relações diárias, o homem estúpido que esquartejava seus filhotes mais verdes e exuberantes com uma machadinha, as crianças esfoladas pela ansiedade, que mal viam naqueles ramos esquartejados a maneira trágica e irreversível como uma criança pode terminar e, confuso, diria um pouco tonto, trouxe minha loucura de volta para dentro da sala vazia, aquele espaço oco feito da relação entre o que não penso com o que deveria fazer antes de pensar, e juro a vocês que nesse momento pude ver galhos ressequidos e longos saírem pelas mangas da minha camisa, sem ninguém ali para os podar.
5 comentários:
... eu te phodo!
Raphael
que porra é essa, cara?
erro de digitação
HAHAHAHAHHAHAHHHAAHAAAAAGHHHMMPPFF!!!!?
quebre-os... e novos galhos farão o ciclo...quebre-os.
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