Acho justo que o susto da culpa seja imposto aos que usam de bula para saber como sofrer. Escrevo isso contra mim mesmo e também contra todos aqueles com quem me decepciono diariamente e com quem me decepcionei ao longo da vida, por transferirem para “o mundo injusto” e para “as pessoas que não prestam” uma responsabilidade que deveriam ter pelas próprias vidas. Por alucinarem-se em paranóia e teorias conspiratórias porque não encontraram a felicidade fantasiosa folheada nas revistas de comportamento e moda. Em suma, por culparem o mundo e as pessoas que os rodeiam por aquilo que ansiavam e não tiveram (ou talvez, por aquilo que algum sistema vicioso ansiava por eles sem que eles soubessem), conseguindo, dessa forma, autoridade suficiente para sofrer constantemente.
Do pouco que podemos dizer sobre nós mesmos, uma coisa é que sofrer não se sabe como, porque arde. Ardência é espanto e não predisposição. Algo só arde quando assusta, quando você não está preparado para a coisa, como acontece com as mortes (talvez com a nossa mesma), a felicidade e o fogo, por exemplo. Portanto, é um erro pretender sensações, embutir sensações espontâneas de esperança. Algumas coisas simplesmente não podem ser soterradas com o nosso antropocentrismo. Tudo morre quando ganha um nome. Muito prazer, me chamo José, e José, porque agora tem um nome, está imediatamente morto, assim como o amor, quando inventamos seu nome para saciar aquilo que não podemos explicar, justamente porque nos assusta demais.
Quando, por exemplo, você toma café fervendo ou rasga o dedo numa cerca de arame, isso arde, não arde? E você não sabe muito bem por que arde – apesar da ciência tentar explicar – porque no fundo só existe uma única verdade: essa que não se sabe qual é e que, portanto, estamos fadados a procurar eternamente, mesmo com toda ardência, loucura e minimalismo intelectual em prol de um bom domingo com a família alimentando os gansos no parque arborizado: todos tão distantes uns dos outros que até podem dizer que se amam.
Sorrir deveria ser tão fácil quanto chorar. Mas pessoas passam nas ruas programadas para serem felizes até morrer, um paradoxo em si, porque me parece meio triste fazer a mesma coisa até morrer – deixa claro que nem tudo está bem. Se te esbarram na rua, não pedem desculpa, não têm tempo para pequenezas, precisam fugir do abismo, aquele que circunda, nunca pararam para ver como é bonito lá embaixo. Se esquecem que o sofrimento pela ardência é anterior, superior e, acima de tudo, independente da nossa vontade.
O fundo da ardência, única relevância filosófica real, não se conhece. Ele está ali, na nossa frente, no nosso aleijão, em algum lugar, para olharmos suas entranhas expostas em nós mesmos, nas nossas misérias e fracassos, sem podermos agarrar sua provavelmente frustrante e microscópica realidade – talvez grande demais para nossos olhos furados, acostumados com grandiosidades irrelevantes. Então nos contentamos com pseudo-caridades e auto-promoções.
Então tapeamos a nós mesmos com explicações insuficientes. Teorias para dentro e não para fora. Tímidos espasmos de desconsolo. Gritamos por um isolamento voluntário, santificadamente alheio, que almeja o bendito atalho para a felicidade dos exclusivos. Pior, para a felicidade padrão. Não é possível aceitar que algo que serve para o bem presuma a felicidade, tal como se pronuncia pelas sacristias e salões de beleza, como uma busca elevada, sectária, para uns e não para todos. Pois, se for assim, nazismo, religião e felicidade se coincidem em alto grau: todos excluem os mal-aventurados.
Mas também os bem-dotados de razão e egocentrismo devem entender que não existe uma vida pela qual se possa orgulhar completamente. Em suma: não existe o que o homem estipula – e aí está outra estratégia fascista subliminar – como padrão de felicidade e sucesso, porque essa idéia, perto do caos de possibilidades gritantes de combinações e misturas de comportamentos cosmológicos, perto do equilíbrio perfeito espontâneo em tudo que existe de bom e de mau, é apenas uma forma disfarçada de – primeiro – esterilizar do mundo o que um grupo pequeno e dominante, com um intelecto não muito brilhante mas astucioso, julga desnecessário – segundo – lambuzar este erro fatal com o que sobrar da carcaça da nossa civilização. Não vejo nada além disso quando olho para baixo na primeira esquina ou para uma varanda, dois homens, o primeiro sem as duas pernas e o segundo sob fogos de fim de ano numa mansão carregado de drogas pesadas e prostitutas e dinheiro desviado que poderia ter mantido pelo menos uma das pernas do outro miserável.
No fundo, esperamos demais do mundo. Isso não é meu, mas vale a pena repetir: não é de propósito que o mundo nos frustra, ele simplesmente é indiferente ao nosso destino, nossa consciência é uma centelha passageira no meio da noite*. Portanto, não há porque projetar no outro a vontade sufocada. Isso é ainda mais covarde do que um tiro na nuca. Porque um tiro na nuca mata a pessoa de uma vez. Não a deixa com questionamentos vazios sobre uma atitude impulsiva, geralmente impensada.. Enquanto que a padronização elitista de sensações como a felicidade rende milhões de mortes por asfixia, destinadas aos não privilegiados pelas dádivas de deus, ou o que quer que o valha.
E torna-se assunto para terapeutas, suicidas, loucos – que muitas vezes são terapeutas e muitas vezes são suicidas, mas também muitas vezes são simplesmente justos –, padres, pastores, donos de cabaré, donos do dinheiro, que são entretidos pelos donos de cabaré, ladrões de almas, que entretêm os donos do dinheiro, assassinos de deus, que matam por uma causa que até deus desconhece... Para todas as risadas na beira do caos e para os mono(nazi)teístas em geral, que acreditam numa enorme rendição do homem para a salvação da espécie por definições deterministas e excludentes. Deus sob forma de pressão, quando deus também é o próprio homem. Mas não pensamos nisso. Pensamos em deus como um único homem. Mas ele é todos e mais o resto do que sobrou, tudo ao mesmo tempo, como a eternidade**. Nascemos culpados por causa do erro da salvação da alma através do martírio da vida e do prazer pelo erro dos pecados formadores de um espírito arejado.
Muitos homens justificam a morte de um boi com a adoração de uma planta. Isso apesar de todos os neurônios e todas as enzimas e obediências involuntárias e teorias determinantes que possam formular. Mas nunca estão realmente preparados para o espaço não preenchido que gera movimentos e mortes constantes e praticamente involuntários, ou senão imprevisíveis. O tal pêndulo entre o tédio e o desejo, assim como eu falava da ardência: algo que arde e cura naturalmente.
É sabido que o martírio é chorume de fanatismo religioso. Nem Jesus estava preparado para sofrer, porque se estivesse, não teria acusado o próprio pai de traidor.
Portanto, dedico este pequeno e ridículo texto sobre coisas nas quais nem mesmo eu tenho conseguido pensar com clareza ultimamente – e talvez devesse – aos calados sofredores, aos amantes embotados de silêncios malditos, aos poetas de casacas desbotadas nos cantos dos bares escuros, às meninas que cortam os pulsos depois de se enganar com relação ao amor, ao mais solitário profeta na mais rarefeita montanha, aos limpadores de todas as janelas do centro da cidade, que só olham para frente e para baixo, aos retirantes nordestinos comidos pela lepra, jogados nas calçadas da cidade grande demais para mais uma pessoa velha, magra, em carne-viva, com a mão sobre o rosto, porque tem vergonha de pedir os últimos trocados de volta para Riacho das Almas, Pernambuco, onde enterraram a sua... e a de todos os que não sabem sofrer e gritam e choram e esperneiam e batem as cabeças nas paredes sem entender e procuram pelo que já foi encontrado mas não por você e tentam outra vez o mesmo erro para ver se dá certo e erram outra vez e não acreditam em mais nada outra vez e desmaiam e se sentem deuses rebaixados por se orgulharem do próprio fracasso como se fosse apenas mais uma tentativa e depois se sentem sanguessugas sociais de escassa bondade e erram bem menos do que gostariam de poder se orgulhar e muito mais do que conseguem pensar sobre e se afetam com as coisas ruins e boas a sua volta, andam de olhos abertos nas ruas vendadas que, também elas, estão perdidas e duvidam de tudo porque no fundo acreditam em tudo que a eles se sobrepõe e isso inclui a puta no lixo e o cafetão e todas as falsas personalidades do amor como preenchimento sórdido de uma alma vazia quando o amor, ao contrário de preencher, de fadar ao fracasso por admitir-se limitado, serve como forma de expansão imensurável, como liga entre dois corpos que correm juntos sem saber por que nem muito menos para onde, por um caminho pedregoso e hipnotizante que segue sem mira nem esperanças, mas com a incrível confiança de que se pode com qualquer coisa, porque no momento do amor não se espera nada.
Por isso só existe história de amor feliz em filme ruim e tele-novela. O amor é para os desesperados. O amor é algo ilimitado forçando entrada num pequeno espaço lotado e barulhento. É dos que esperam pelo tempo apenas para descobrir que o tempo não dá braço em torcer de curva nem abraço e beijo quando a saudade madruga. Ele passa sem se dar conta da presença do que inventamos para o mundo.
*Arthur Schopenhauer, Sobre a coisa em si e a aparência.
**do poeta Kenneth Patchen
Do pouco que podemos dizer sobre nós mesmos, uma coisa é que sofrer não se sabe como, porque arde. Ardência é espanto e não predisposição. Algo só arde quando assusta, quando você não está preparado para a coisa, como acontece com as mortes (talvez com a nossa mesma), a felicidade e o fogo, por exemplo. Portanto, é um erro pretender sensações, embutir sensações espontâneas de esperança. Algumas coisas simplesmente não podem ser soterradas com o nosso antropocentrismo. Tudo morre quando ganha um nome. Muito prazer, me chamo José, e José, porque agora tem um nome, está imediatamente morto, assim como o amor, quando inventamos seu nome para saciar aquilo que não podemos explicar, justamente porque nos assusta demais.
Quando, por exemplo, você toma café fervendo ou rasga o dedo numa cerca de arame, isso arde, não arde? E você não sabe muito bem por que arde – apesar da ciência tentar explicar – porque no fundo só existe uma única verdade: essa que não se sabe qual é e que, portanto, estamos fadados a procurar eternamente, mesmo com toda ardência, loucura e minimalismo intelectual em prol de um bom domingo com a família alimentando os gansos no parque arborizado: todos tão distantes uns dos outros que até podem dizer que se amam.
Sorrir deveria ser tão fácil quanto chorar. Mas pessoas passam nas ruas programadas para serem felizes até morrer, um paradoxo em si, porque me parece meio triste fazer a mesma coisa até morrer – deixa claro que nem tudo está bem. Se te esbarram na rua, não pedem desculpa, não têm tempo para pequenezas, precisam fugir do abismo, aquele que circunda, nunca pararam para ver como é bonito lá embaixo. Se esquecem que o sofrimento pela ardência é anterior, superior e, acima de tudo, independente da nossa vontade.
O fundo da ardência, única relevância filosófica real, não se conhece. Ele está ali, na nossa frente, no nosso aleijão, em algum lugar, para olharmos suas entranhas expostas em nós mesmos, nas nossas misérias e fracassos, sem podermos agarrar sua provavelmente frustrante e microscópica realidade – talvez grande demais para nossos olhos furados, acostumados com grandiosidades irrelevantes. Então nos contentamos com pseudo-caridades e auto-promoções.
Então tapeamos a nós mesmos com explicações insuficientes. Teorias para dentro e não para fora. Tímidos espasmos de desconsolo. Gritamos por um isolamento voluntário, santificadamente alheio, que almeja o bendito atalho para a felicidade dos exclusivos. Pior, para a felicidade padrão. Não é possível aceitar que algo que serve para o bem presuma a felicidade, tal como se pronuncia pelas sacristias e salões de beleza, como uma busca elevada, sectária, para uns e não para todos. Pois, se for assim, nazismo, religião e felicidade se coincidem em alto grau: todos excluem os mal-aventurados.
Mas também os bem-dotados de razão e egocentrismo devem entender que não existe uma vida pela qual se possa orgulhar completamente. Em suma: não existe o que o homem estipula – e aí está outra estratégia fascista subliminar – como padrão de felicidade e sucesso, porque essa idéia, perto do caos de possibilidades gritantes de combinações e misturas de comportamentos cosmológicos, perto do equilíbrio perfeito espontâneo em tudo que existe de bom e de mau, é apenas uma forma disfarçada de – primeiro – esterilizar do mundo o que um grupo pequeno e dominante, com um intelecto não muito brilhante mas astucioso, julga desnecessário – segundo – lambuzar este erro fatal com o que sobrar da carcaça da nossa civilização. Não vejo nada além disso quando olho para baixo na primeira esquina ou para uma varanda, dois homens, o primeiro sem as duas pernas e o segundo sob fogos de fim de ano numa mansão carregado de drogas pesadas e prostitutas e dinheiro desviado que poderia ter mantido pelo menos uma das pernas do outro miserável.
No fundo, esperamos demais do mundo. Isso não é meu, mas vale a pena repetir: não é de propósito que o mundo nos frustra, ele simplesmente é indiferente ao nosso destino, nossa consciência é uma centelha passageira no meio da noite*. Portanto, não há porque projetar no outro a vontade sufocada. Isso é ainda mais covarde do que um tiro na nuca. Porque um tiro na nuca mata a pessoa de uma vez. Não a deixa com questionamentos vazios sobre uma atitude impulsiva, geralmente impensada.. Enquanto que a padronização elitista de sensações como a felicidade rende milhões de mortes por asfixia, destinadas aos não privilegiados pelas dádivas de deus, ou o que quer que o valha.
E torna-se assunto para terapeutas, suicidas, loucos – que muitas vezes são terapeutas e muitas vezes são suicidas, mas também muitas vezes são simplesmente justos –, padres, pastores, donos de cabaré, donos do dinheiro, que são entretidos pelos donos de cabaré, ladrões de almas, que entretêm os donos do dinheiro, assassinos de deus, que matam por uma causa que até deus desconhece... Para todas as risadas na beira do caos e para os mono(nazi)teístas em geral, que acreditam numa enorme rendição do homem para a salvação da espécie por definições deterministas e excludentes. Deus sob forma de pressão, quando deus também é o próprio homem. Mas não pensamos nisso. Pensamos em deus como um único homem. Mas ele é todos e mais o resto do que sobrou, tudo ao mesmo tempo, como a eternidade**. Nascemos culpados por causa do erro da salvação da alma através do martírio da vida e do prazer pelo erro dos pecados formadores de um espírito arejado.
Muitos homens justificam a morte de um boi com a adoração de uma planta. Isso apesar de todos os neurônios e todas as enzimas e obediências involuntárias e teorias determinantes que possam formular. Mas nunca estão realmente preparados para o espaço não preenchido que gera movimentos e mortes constantes e praticamente involuntários, ou senão imprevisíveis. O tal pêndulo entre o tédio e o desejo, assim como eu falava da ardência: algo que arde e cura naturalmente.
É sabido que o martírio é chorume de fanatismo religioso. Nem Jesus estava preparado para sofrer, porque se estivesse, não teria acusado o próprio pai de traidor.
Portanto, dedico este pequeno e ridículo texto sobre coisas nas quais nem mesmo eu tenho conseguido pensar com clareza ultimamente – e talvez devesse – aos calados sofredores, aos amantes embotados de silêncios malditos, aos poetas de casacas desbotadas nos cantos dos bares escuros, às meninas que cortam os pulsos depois de se enganar com relação ao amor, ao mais solitário profeta na mais rarefeita montanha, aos limpadores de todas as janelas do centro da cidade, que só olham para frente e para baixo, aos retirantes nordestinos comidos pela lepra, jogados nas calçadas da cidade grande demais para mais uma pessoa velha, magra, em carne-viva, com a mão sobre o rosto, porque tem vergonha de pedir os últimos trocados de volta para Riacho das Almas, Pernambuco, onde enterraram a sua... e a de todos os que não sabem sofrer e gritam e choram e esperneiam e batem as cabeças nas paredes sem entender e procuram pelo que já foi encontrado mas não por você e tentam outra vez o mesmo erro para ver se dá certo e erram outra vez e não acreditam em mais nada outra vez e desmaiam e se sentem deuses rebaixados por se orgulharem do próprio fracasso como se fosse apenas mais uma tentativa e depois se sentem sanguessugas sociais de escassa bondade e erram bem menos do que gostariam de poder se orgulhar e muito mais do que conseguem pensar sobre e se afetam com as coisas ruins e boas a sua volta, andam de olhos abertos nas ruas vendadas que, também elas, estão perdidas e duvidam de tudo porque no fundo acreditam em tudo que a eles se sobrepõe e isso inclui a puta no lixo e o cafetão e todas as falsas personalidades do amor como preenchimento sórdido de uma alma vazia quando o amor, ao contrário de preencher, de fadar ao fracasso por admitir-se limitado, serve como forma de expansão imensurável, como liga entre dois corpos que correm juntos sem saber por que nem muito menos para onde, por um caminho pedregoso e hipnotizante que segue sem mira nem esperanças, mas com a incrível confiança de que se pode com qualquer coisa, porque no momento do amor não se espera nada.
Por isso só existe história de amor feliz em filme ruim e tele-novela. O amor é para os desesperados. O amor é algo ilimitado forçando entrada num pequeno espaço lotado e barulhento. É dos que esperam pelo tempo apenas para descobrir que o tempo não dá braço em torcer de curva nem abraço e beijo quando a saudade madruga. Ele passa sem se dar conta da presença do que inventamos para o mundo.
*Arthur Schopenhauer, Sobre a coisa em si e a aparência.
Um comentário:
Concordo com o primeiro paragrafo e mais a raça humana designa termos aos fatos que ameaça a sua estabilidade (este é louco!), e por meio da racionalização do molde comportamental inserem acertos e erros ao individuo que nunca soube quem eras?! Programam e limitam atraves da razão a capacidade humana de SER. Sendo que não somos e nunca seremos NADA. Utopia esta vida ... "Nicolas Berdiaeff": A vida anda para utopias. E talvez um século novo começa, um século em que os intelectuais e a classe cultivada sonharão aos meios para evitar utopias e para voltar à uma sociedade não utópica, menos "perfeitos" e mais livres. MERDA!
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